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O dilema do turismo na favela: “Se é errado visitar porque é perigoso, seria errado morar lá, certo?”

Com Olimpíadas e sensação de segurança proporcionada pelas UPPs, turismo nas comunidades se massificou.

Felipe Betim
Moradores da favela da Rocinha, nesta terça.
Moradores da favela da Rocinha, nesta terça. Silvia Izquierdo (AP)

A espanhola María Esperanza Jiménez Ruiz, de 67 anos, foi morta pela Polícia Militar quando visitava a favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, nesta segunda-feira e muitas das reações nas redes são as mesmas: “Rocinha não é lugar de turismo, pelo amor de Deus”, reclamou um leitor do EL PAÍS nas redes sociais. “Favela não é lugar pra fazer turismo?! Não obedeceu, morreu!”, disse outro. O turismo nas favelas não só faz parte do cotidiano da cidade como se intensificou nos últimos anos. Nos tempos de Rio olímpico e de sensação de segurança gerada pelas Unidades de Polícia Pacificadora – instaladas sobretudo em lugares próximos aos principais pontos turísticos do Rio –, muitas pessoas passaram a considerar um plano sem fissuras visitar uma favela. Para ver a vida além das calçadas turísticas de Copacabana.

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Pacotes turísticos que incluíam passeios por favelas como Vidigal (Leblon) e Santa Marta (Botafogo) se espalharam. Camionetes que cruzavam a cidade em direção a Rocinha, com direito a turistas em cima do carro como estivessem fazendo um safári, passaram a fazer parte da paisagem urbana. E moradores das favelas passaram a conviver com a visita diária de gringos loiros queimados de sol, curiosos em saber como viviam e ansiosos por ver a paisagem do Rio do alto do morro. O Vidigal transformou-se em um dos lugares mais badalados da cidade, com novos moradores vindos de fora, hostels e restaurantes em seu topo com preços proibitivos e uma vista deslumbrante.

Em meio a este turismo massificado também ganhou força o chamado turismo comunitário, feito por guias de turismo das próprias favelas. Como Cosme Felippsen, morador do morro da Providência, a mais antiga favela do Rio, perto da zona portuária da cidade. "Eu tinha oito anos em 1997, quando o morro fez 100 anos. Hoje a favela faz 120 anos e vai fazer 20 que eu guiei o primeiro casal. Eles me pediram para andar no morro e recebi um picolé como primeiro pagamento. Hoje ganho dinheiro e cerveja", conta. Depois, como membro da igreja metodista, levava missionários que vinham dos Estados Unidos para conhecer a favela e outras paisagens da cidade.

Em 2013 abriu o Providência Turismo, dois anos mais tarde se formou como guia e, hoje, organiza o Rolé dos Favelados: um passeio por comunidades cariocas com moradores militantes. "É um passeio e um debate sobre o que é favela, a cultura da favela, uma discussão sobre cidade e direitos humanos... Um guiamento de militância feito por favelados", explica. Hoje, a maioria dos que visitam as favelas com ele são brasileiros e também cariocas, inclusive pessoas vivem em outras comunidades da cidade. "Existe um trânsito entre o asfalto e a favela que não é só turismo", explica.

Depois do que aconteceu com a espanhola, Cosme conta que os turistas estão mais assustados. Sobre o caso, opina que houve imprudência de todos os envolvidos. "Já cancelei um passeio no Complexo do Alemão por conta de uma onda de tiroteio, como já cancelei na Providência só por achar que o clima não estava bom", conta. "Se um guia local estivesse com a espanhola, talvez não tivessem feito aquele caminho ou teriam agido de outra forma quando passaram pela polícia. Tem que abrir os vidros, passar devagar com carro, ter cautela com todos que estão armados", acrescenta. Ele conta orgulhoso que já fez aproximadamente mil passeios pela Providência e nunca teve nenhum problema.

Ainda assim, Cosme critica veementemente aqueles que dizem que não se deve fazer turismo nas favelas. "Se é errado ir para a favela porque é perigoso, então seria errado morar lá, certo?", questiona. "Nesse momento que estamos falando, tem criança morrendo. E ninguém se importa. As pessoas querem ir curtir um samba, uma cerveja, mas aí acontece uma merda e se viram contra a favela, afastam a favela", argumenta. E completa: "Eles [a polícia] fazem uma merda e jogam a responsabilidade no guia. (...) O que existe não é uma guerra, é um extermínio de uma população pobre, preta e favelada".

Com a morte de María Esperanza, sabe-se agora que o turismo nas favelas é algo do cotidiano, assim como o perigo dos que vivem e transitam por elas de serem mortos.

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