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Nacionalismos que envenenaram a Europa

Inclusão de todas as pessoas em um mesmo Estado conseguiu solucionar problemas que pareciam impossíveis

Guillermo Altares
Trem que liga Estrasburgo e Kehl
Trem que liga Estrasburgo e Kehlpatrick hertzog (AFP)
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Toda a história da Europa se move em um sentido: a construção de Estados em que os direitos sejam políticos e, portanto, correspondam a todas as pessoas, frente às nações em que os direitos dependem do pertencimento a uma ideia, etnia, língua e religião. E não foi fácil chegar até aqui. O caminho foi uma longa sucessão de desastres e cataclismos, das guerras de religião nos séculos XVI e XVII aos conflitos que provocaram centenas de milhares de mortos na antiga Iugoslávia nos anos noventa do século passado. A Europa atual tem muitos problemas, alguns com tantos ecos no passado como os efeitos da crise econômica e o ressurgimento da ultradireita, mas a inclusão de todas as pessoas em um mesmo modelo conseguiu apagar conflitos que pareciam impossíveis de se resolver.

O Mundo de Ontem, as memórias do escritor judeu Stefan Zweig, se transformou no equivalente literário ao Hino à Alegria de Beethoven, um canto inesgotável à sabedoria desse continente, mas também um alerta sobre a fragilidade de suas conquistas. Zweig se suicidou no Brasil em 1942 quando pensava que já não existia nenhuma esperança à Europa e que a vitória de Hitler era inevitável. Isso é o que escreve sobre o nacionalismo: “Pela minha vida galoparam todos os corcéis amarelados do apocalipse, a revolução e a fome, a inflação e o terror, as epidemias e a emigração; vi nascerem e se espalharem diante de meus próprios olhos as grandes ideologias de massa: o fascismo na Itália, o nacional-socialismo na Alemanha, o bolchevismo na Rússia e, sobretudo, a pior de todas as pestes: o nacionalismo, que envenena a flor de nossa cultura europeia”.

A frase de Zweig deve ser aplicada com cautela à situação atual: não nos encontramos diante de um ataque contra a razão e a sociedade semelhante ao que representaram os grandes totalitarismos, não há na Europa nada parecido a Hitler e Stalin. Mas quando o escritor coloca o nacionalismo como o pior dos males, como um veneno, se refere à exclusão que representa para todos os que ficam de fora. Sua idealização do Império Austro-Húngaro se deve ao fato de ter sido uma entidade na qual puderam viver sob uma mesma lei e direitos povos, línguas e religiões totalmente diferentes.

A queda daquele império provocou o levantamento de fronteiras que sempre deixavam alguém de fora, porque se os limites são traçados baseando-se em imaginários direitos nacionais alguém sempre estará excluído – os húngaros da Romênia e os romenos da Hungria, os italianos e os eslovenos de Trieste e assim até o infinito. Não existem nações uniformes. O grande escritor austríaco era plenamente consciente disso e por isso via com tanto pessimismo a evolução vivida pela Europa nos anos trinta.

Como a de Zweig, a peripécia pessoal do sociólogo alemão Norbert Elias pode servir para resumir o século XX: veterano da Primeira Guerra Mundial, fugiu da Alemanha por ser judeu – sua mãe não conseguiu escapar e foi assassinada em Auschwitz –, viveu na Inglaterra, onde foi deportado à ilha de Man por ser alemão, e depois trabalhou em universidades da Alemanha e Holanda. Escreveu um livro muito influente, O Processo Civilizador, sobre a cimentação do Estado no Ocidente e a proteção que, no final, o Estado-Leviatã dava aos indivíduos. Essa obra serviu de inspiração a Steven Pinker para escrever Os Anjos Bons da Nossa Natureza, um ensaio que dá uma visão profundamente otimista do presente já que, afirma, vivemos no momento menos violento da história. Elias explica que a Europa no século XV tinha 5.000 unidades políticas independentes, a maioria baronatos; 500 no começo do século XVII; 200 na época de Napoleão, no começo do século XIX; e menos de 30 em 1953.

Quando se tornou independente, a Eslovênia retirou a cidadania de 18.000 pessoas porque não haviam nascido nessa antiga república iugoslava

Esses dados representam um resumo perfeito do que ocorreu no continente desde que Zweig escreveu suas memórias: menos Estados como solução aos conflitos nacionais. A UE nasceu com o propósito de dividir os recursos – o carvão e o aço –, mas rapidamente se transformou em algo muito mais ambicioso: criar uma estrutura inclusiva, em que estejam representados os países, as nações e suas diferenças, mas sobretudo as pessoas. A história da Europa é tão intrincada que não existe outra forma de se resolver conflitos milenares. Em seu livro L’invention de l’Europe, o demógrafo francês Emmanuel Todd explica que “a civilização europeia atual é o produto de uma síntese, lenta e trabalhosa” porque “suas paixões, religiosas e econômicas, estão inscritas no espaço”. Dar um novo sentido a esse espaço, que seja de todas as pessoas sem que importem as suas paixões (porque, não podemos nos esquecer, o nacionalismo é uma paixão, não uma realidade), é a grande conquista da UE. E voltar atrás seria um erro gigantesco.

Algum político insensato falou de algo como o “modelo esloveno” para o desafio separatista da Catalunha. Até mesmo omitindo dados que não deveriam ser omitidos – uma guerra de 10 dias, 70 mortos, o começo da catástrofe iugoslava, a pior sofrida pela Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial –, é interessante lembrar um ponto daquela independência, que reflete o que ocorre quando Estados são criados baseados na nação: os chamados “apagados”. Quando a Eslovênia se tornou independente, 10% da população (200.000 de dois milhões) era de origem iugoslava, havia se instalado na República mais rica, mas não havia nascido ali, apesar de estar integrada. Primeiro foram obrigados a regularizarem-se (no país em que viviam há décadas!) e 18.000 deles foram “apagados”, eliminados dos registros como se nunca houvessem existido. Era uma conclusão lógica: no Estado dos eslovenos, os que não são não têm lugar. Em um Estado plurinacional, esse problema não existe. Quando foi solucionado? Após a Eslovênia entrar na UE e Bruxelas a obrigar a resolver assunto tão feio.

No fim de semana do referendo ilegal, a Espanha foi visitada por um escritor bósnio chamado Velibor Čolić, autor de um livro, cheio de humor, sobre a dificuldade de se começar do zero em outro país, Manual do Exílio. Bósnio de origem croata, desertou durante a guerra, esteve em um campo de concentração do qual fugiu e se exilou na França. Aprendeu o idioma e acabou virando um escritor de sucesso. Agora vive em Estrasburgo, trabalha com imigrantes (50 nacionalidades convivem na cidade) e contemplou com uma mistura de preocupação e incredulidade o que acontecia na Catalunha. Čolić dizia que os referendos nacionalistas eram coisa do diabo. E não parava de brincar que seu próximo exílio seria o mais confortável e barato, porque um trem liga Estrasburgo a Kehl, na Alemanha. Foi inaugurado em 24 de abril e cruza, por 1,40 euro (5 reais), uma fronteira que provocou três guerras entre 1870 e 1945. O exilado bósnio não podia entender que alguém queira descer desse trem que cruza fronteiras e deixa para trás para sempre uma triste história.

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