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Instruções para arrancar um coração

Arqueóloga mexicana Ximena Chávez apresenta um longo estudo sobre o sacrifício ritual no antigo México

Pablo Ferri
Uma máscara feita com um crânio humano, achada no Templo Maior.
Uma máscara feita com um crânio humano, achada no Templo Maior.INAH

Dentre todas as críticas que Mel Gibson recebeu por Apocalypto, nenhuma foi sobre a cena do sacrifício. Ou, melhor dizendo, sobre a técnica sacrificial do ator que interpretava o sacerdote. Todas ignoraram o formato e os adornos da faca, a parte do torso onde o sacrificado é apunhalado, o tempo em que demora para arrancar seu coração... Em menos de cinco segundos, o sacerdote fende o abdômen da vítima, enfia a mão e extrai o músculo cardíaco! Como se fosse uma bandeja de doces. Retira o coração, com as veias e as artérias perfeitamente seccionadas, pronto para servir.

Muitos dos críticos de Gibson censuraram a violência do filme. A civilização maia, diziam, foi muito mais do que um grande banho de sangue. Pode ser que tivessem razão. E, entretanto, Gibson falhou justamente naquilo que os outros condenavam. A suposta força do filme se tornou uma nova fraqueza. A violência de Apocalypto está mal contada. A técnica de seu sacerdote não passa de uma farsa.

O Instituto Nacional de Antropologia e História do México, o INAH, acaba de apresentar Sacrifício Humano e Tratamentos Pós Sacrificiais no Templo Maior de Tenochtitlán, o último trabalho da arqueóloga Ximena Chávez. É um longo estudo sobre o assassinato ritual na Mesoamérica, com especial ênfase nas cerimônias realizadas no recinto sagrado do mundo mexica. O estudo se transforma, além disso, na principal obra de consulta para qualquer cineasta que deseje abordar o sacrifício humano na Mesoamérica.

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São quase 500 páginas de extraordinário valor científico e documental que reúnem décadas de trabalhos e estudos sobre o assunto, além das próprias conclusões da autora, após analisar os restos de 101 sacrifícios recuperados do entorno do Templo Maior.

Discípula de grandes estudiosos da morte do passado, como Eduardo Matos e Gregory Pereyra, Chávez dedicou boa parte de sua vida profissional ao além. Seu primeiro livro, Os Rituais Funerários no Templo Maior de Tenochtitlán, abordava as exéquias da nobreza mexica. O segundo fala das cerimônias sacrificiais. Primeiro os que já morreram, depois os que iriam morrer.

P. De onde vem seu interesse pelo morto, pelos que vão morrer?

R. Tem um pouco a ver com minha história pessoal. Venho de uma família de muitos médicos. Era comum crescer vendo ossos, crânios. E me chamou muito a atenção.

P. E é um interesse pela morte, pelos que vão morrer, ou pela busca do sagrado?

R. Meu interesse tem a ver com a morte. É algo que todos nós enfrentamos e, entretanto, muitas vezes nos calamos. Lembro muito de um livro de Nigel Barley, Dançando sobre a Tumba. Ele fala dos antropólogos diante da morte. Diz: "Raras vezes os antropólogos pensam que eles mesmos irão morrer". Bom, é um fenômeno que me interessa. Não só o fenômeno biológico, mas a resposta social diante da morte, como as sociedades reagem diante da morte. Como elaboram rituais para preparar o corpo, para ajudar a parte imaterial a chegar ao além.

Etimologicamente, sacrifício significa chegar ao sagrado. Com o passar dos anos, Ximena Chávez concluiu que o principal canal sacrificial dos mexicas era a cardiotomia. Os astecas chegavam ao sagrado retirando o coração de suas vítimas. "Os sacerdotes faziam uma incisão por baixo da caixa torácica e introduziam a mão para retirar o coração. Mas não o arrancavam. Imagine, as veias e artérias que existem ali são muito poderosas. Encontramos marcas que mostravam que quando o sacerdote enfiava a mão, tinha uma pequena ferramenta com a qual ia cortando essas estruturas. E de forma acidental deixou as marcas sobre a parte interna das costelas".

Por mais hábeis que fossem – e a arqueóloga diz que eram – parece difícil pensar que demoravam somente cinco segundos, o tempo proposto por Mel Gibson em Apocalypto. Do ponto de vista anatômico, o filme é uma fraude.

Estamos conquistando bem?

Muitos veículos da imprensa mexicana publicaram por esses dias que a arqueóloga "desmistifica o sacrifício humano entre os mexicas". Pode ser por conta do próprio INAH, que intitulou assim seu comunicado de imprensa. Em todo caso, parece difícil desmistificar algo não mítico. Poucos arqueólogos acreditam hoje em dia nos cálculos dos cronistas espanhóis do século XVI. Dezenas de milhares morriam sacrificados, diziam. Na História das Índias da Nova Espanha, Frei Diego de Durán escreveu que 80.000 morreram em uma só cerimônia, durante o reinado de Ahuizotl, tio de Montezuma II.

Isso, ao que parece, não chegou a acontecer. Como lembra a arqueóloga, que cita um colega que fez o cálculo, se o que Durán disse fosse verdade, a nobreza mexica precisaria sacrificar 47 cativos por hora, sem parar, durante 96 horas, em 20 lugares ao mesmo tempo. Somente assim teriam matado 80.000. "Por enquanto sabemos de mil, no total", diz a autora.

Apesar de tudo, os conquistadores tomaram aquelas práticas como uma declaração de guerra e fizeram a sua parte. É preciso acabar com os bárbaros, diziam. Depois o faziam. Por outro lado, Frei Bartolomeu de Las Casas criticava os soldados, a quem acusava de serem mais selvagens do que os próprios bárbaros. Em 1542, Las Casas publicou Brevíssima Relação da Destruição das Índias, em que informava ao Rei das barbaridades cometidas por seus súditos. Funcionou. Em 1550, Carlos I ordenou aos conquistadores que deixassem de conquistar.

O que aconteceu depois é provavelmente um dos episódios mais estranhos e pouco espanhóis da história da Espanha. Impressionado pelo que contava Frei Bartolomeu, o Rei convocou uma junta de sábios em Valladolid (México), com a intenção de que respondessem a uma pergunta: Estamos conquistando bem?

Las Casas dizia que não, que não se podia continuar com a guerra. Os índios, defendia, são perfeitamente capazes de se governarem por si mesmos. Práticas como o sacrifício não são eliminadas com pancadas, da mesma forma que a fé em Deus não seria imposta pela força. Outros, como Juan Ginés de Sepúlveda, mostravam suas reservas e pensavam que a guerra de conquista era uma opção válida.

Não ficou claro quem ganhou, se Las Casas ou seus adversários. De qualquer forma, Carlos I voltou a permitir aos conquistadores que conquistassem poucos anos mais tarde. O sacrifício humano serviu à causa como desculpa.

Ximena Chávez não hesita, entretanto, em assinalar o "interesse econômico" que ocorreu. Os séculos e séculos de preconceito que se seguiram sustentaram o estigma. Sacrifícios existiram, mas nem tantos. "Ainda hoje", diz a arqueóloga, "se você procura sacrifício humano no Google, imediatamente aparecem os astecas".

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