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E se houvesse uma alternativa à imigração?

Neste século XXI com tantos deslocamentos, a agroindústria se apresenta como uma opção de futuro para combater a fome e a falta de oportunidades

Cabras cruzando o rio Tina Au, no Nepal, um dos países mais afetados pela mudança climática.
Cabras cruzando o rio Tina Au, no Nepal, um dos países mais afetados pela mudança climática.© Chris Steele-Perkins / Magnum Ph / FAO

As migrações não são algo novo. Desde que as primeiras sociedades agrícolas se fixaram em determinadas zonas do planeta, pessoas e comunidades deixaram seus lugares de origem em busca de algo (comida, água, terras, bem-estar...) ou fugindo de alguma coisa (fome, sede, guerra, climas adversos...). Hoje, em um mundo cada vez mais populoso e interligado, a ameaça climática, o círculo vertiginoso de fome e guerra e a desigualdade transformam a emigração e o êxodo rural nas únicas opções para (cada vez mais) milhões de pessoas.

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“Uma multidão de pessoas famintas, maltrapilhas e desesperadas começou a caminhar para a fronteira. Mulheres, crianças, velhos… Naquele momento desabei”. Poderia ser o relato do que o sírio Omar, a chadiana Hadje ou o sul-sudanês Robert viveram nos últimos anos. Mas é o depoimento de Alejandra Soler, espanhola nascida em 1903, no projeto documentário Vencidxs. Soler recordava suas impressões ao cruzar a fronteira da França durante a Guerra Civil espanhola (1936-1939). Todos abandonaram seus lares para fugir da violência.

A decisão de emigrar, no entanto, nem sempre é forçosa, embora às vezes pareça. “A percepção de que ir embora é a única opção nem sempre corresponde à realidade, mas, no fim, o que pesa é que a pessoa não vê outra saída”, observa Paola Termine, da FAO (agência da ONU para a alimentação e a agricultura). Pesquisas realizadas pela Organização Internacional das Migrações (OIM) revelam as motivações dos migrantes que aguardam na Líbia o momento de viajar à Europa. Quase nove em cada 10 responderam: falta de oportunidades.

Migrantes africanos com destino à Europa aguardam a transferência para um centro de detenção em Sabratha, cidade costeira da Líbia.
Migrantes africanos com destino à Europa aguardam a transferência para um centro de detenção em Sabratha, cidade costeira da Líbia.HANI AMARA (REUTERS)

Essa falta de oportunidades costuma vir junto com a pobreza e a fome, produtos da espiral perversa do conflito e da violência. “Se criarmos empregos e integramos os jovens, o horror do Boko Haram desaparecerá”, previa Kashim Shettima, governador de Borno, o esquecido estado do norte da Nigéria onde surgiu o grupo jihadista. A mudança climática, em forma de desertificação, fenômenos meteorológicos extremos ou secas, também frustra as perspectivas de futuro e obriga centenas de milhares de pessoas a se mudar.

“Os jovens sempre quiseram ir para as cidades e precisam ter essa opção”

Uma em cada sete pessoas no mundo é migrante, segundo dados da própria OIM. E a tendência é de crescimento. Em 2015, 244 milhões de pessoas emigraram de seus países (41% a mais que em 2000). Os efeitos que esse aumento quantitativo teve nas nações desenvolvidas são bem conhecidos: desde o famoso muro que o presidente norte-americano pretende erguer até a onda de pânico da imigração que percorre a Europa.

OS NÚMEROS DA MIGRAÇÃO

  • Uma em cada sete pessoas no mundo é migrante
  • 244 milhões emigraram para outros países, 769 migraram dentro de suas fronteiras
  • A maioria das migrações internacionais aconteceu entre países em desenvolvimento (37%)
  • A maioria dos migrantes permanece em seu próprio continente: 9 em cada 10 africanos ficam na África, 8 em cada 10 asiáticos, na Ásia
  • As 20 cidades mais populosas do mundo recebem um de cada cinco migrantes internacionais.
  • Os países com mais pessoas nascidas em outro lugar são EUA (46 milhões), Alemanha (12 milhões), Rússia, Arábia Saudita, Reino Unido, Emirados Árabes Unidos, Canadá, França, Austrália e Espanha (5,8 milhões). Um em cada dois emigrantes internacionais foi para um desses 10 países
  • Mais de 60 milhões de pessoas foram forçadas a deixar seus lugares de origem devido à violência ou à perseguição, desse total, 21,3 milhões são refugiados em outros países e 40,8 milhões são deslocados internos
  • Mais de 19 milhões de pessoas foram forçadas a deixar seus lares por causa de desastres climáticos ou naturais

Fontes: IOM (2015) e PMA (2017).

Paradoxalmente, no entanto, a maior parte das migrações continua acontecendo dentro do mesmo país, 769 milhões de pessoas. Os motivos, a origem e o destino, são quase sempre os mesmos: falta de oportunidades, zonas rurais e grandes cidades (mais de 150 milhões dos migrantes internos vão do campo para as cidades na China). À perda de identidade dos que partem, soma-se o vazio para os que ficam. “Se os mais preparados vão embora, que opções haverá no campo?, pergunta-se Termine. “E o problema é que esses movimentos sempre deixarão alguém para trás: crianças, velhos...”, observa. “Sem os jovens, não dá para continuar produzindo alimentos”, diz Justus Lavi Mwololo, de uma associação de camponeses do Quênia.

Essa tendência à urbanização, por outro lado, tem efeitos positivos nas economias de muitos países, além de injetar dinheiro nas zonas rurais através das remessas familiares, de acordo com um relatório da própria OIM. O que preocupa é a velocidade em que esses movimentos acontecem e o aumento previsto para os próximos anos como resultado da explosão demográfica. Apesar da falta de estatísticas, essa migração maciça para as cidades impede o fornecimento de serviços a todos e dá lugar a bolsões de pobreza urbana em diferentes países e continentes. De Daca (Bangladesh) a Lagos (Nigéria), acrescenta o documento.

Qualquer movimento humano em massa pode desestabilizar as comunidades de destino. A tendência preocupa Governos de todo o mundo, conforme se deduz do último relatório da ONU sobre políticas de população: oito em cada 10 países analisados tinham políticas para reduzir o êxodo rural.

Mohamed Amine Attia produz queijo e requeijão de leite de cabra em Mellitta (Tunísia).
Mohamed Amine Attia produz queijo e requeijão de leite de cabra em Mellitta (Tunísia).©Nikos Economopoulos/Magnum Phot / FAO

“É preciso criar oportunidades nas áreas rurais”, defendia em uma entrevista ao EL PAÍS o togolês Gilbert Houngbo, presidente do FIDA, um fundo das Nações Unidas que financia projetos de desenvolvimento. “É uma opção muito melhor que ir morar nas favelas de uma grande cidade, ou arriscar a vida tentando chegar a Lampedusa”, diz Houngbo.

A ideia defendida por organizações como o FIDA ou a FAO é aproveitar o potencial do campo para impulsionar a produção de alimentos – algo que será necessário se o aumento da população continuar – como motor do desenvolvimento. E gerar, com cooperativas e empreendimentos de pequena ou média escala, toda uma série de indústrias relacionadas à agropecuária e à gestão florestal. “A agroindústria é nosso futuro”, sentenciava Audu Ogbeh, ministro da Agricultura da Nigéria (180 milhões de habitantes), que será o terceiro país mais populoso do mundo em 2050, de acordo com as previsões das Nações Unidas.

O motivo da emigração apontado por 9 em cada 10 pesquisados na Líbia: falta de oportunidades

Trata-se, portanto, de prender os jovens dos países em desenvolvimento às áreas rurais para que se tornem pequenos produtores? “De forma alguma”, responde Termine, que trabalha em projetos de desenvolvimento na Tunísia. Segundo ela, a ideia é criar condições para que as pessoas que quiserem permanecer no campo possam fazê-lo. E que a escolha seja realmente livre.

“Os jovens sempre quiseram ir para as cidades e precisam ter essa opção”, diz Termine. Mas para que a viagem seja de ida e volta, os serviços precisam começar a chegar aos territórios mais remotos. A começar pelas comunicações e pelo transporte, como dizia a este jornal Shenggen Fan, diretor-geral do centro de pesquisa agrícola IFPRI. E, sobretudo, pela educação. “Se tiverem de ir à cidade para fazer o ensino médio, os jovens provavelmente não voltarão, por que não podem estudar aqui?”, pergunta-se Sadia Ahmed, representante de uma ONG que congrega pastores na Somália.

Pescadores beneficiários de um projeto para apoiar a pesca em pequena escala e seu processamento no porto de Ajim (Tunísia).
Pescadores beneficiários de um projeto para apoiar a pesca em pequena escala e seu processamento no porto de Ajim (Tunísia).©Nikos Economopoulos/Magnum / FAO

Nesse ponto, Fan insistia na necessidade de potencializar as cidades de pequeno e médio porte para aproximar o rural do urbano. Ali, onde os agricultores se conectam com os mercados, pode-se começar a articular o território. Em muitos países em desenvolvimento, contudo, esses enclaves brilham por sua ausência. A equação, muitas vezes, se resume uma grande cidade superlotada e competitiva e um campo isolado e desconectado.

“É impressionante como a atividade floresce rápido quando recebe um pouco de ajuda”, conta Termine, falando sobre sua experiência na Tunísia com jovens de sólida formação agrícola que não encontravam uma ocupação. Essa ajuda inicial, principalmente em forma de financiamento e crédito, é indispensável. Como também é indispensável que esse apoio seja contínuo: “É preciso trabalhar muito para despertar o espírito empreendedor de jovens e mulheres em muitas regiões. E fazemos isso. Mas não podemos esperar que sociedades se transformem em 24 horas”, diz Houngbo, presidente do FIDA.

Um projeto de Chaker Sleymi (em primeiro plano) para cultivar e processar plantas medicinais e aromáticas emprega mulheres em situação vulnerável em Houamdia Tabarka (Tunísia).
Um projeto de Chaker Sleymi (em primeiro plano) para cultivar e processar plantas medicinais e aromáticas emprega mulheres em situação vulnerável em Houamdia Tabarka (Tunísia).©Nikos Economopoulos/Magnum / FAO

“Um lugar como a Europa se desestabilizou com poucos milhões de sírios batendo a suas portas por causa da guerra”, afirmava Shettima, governador de Borno. “Imaginem o que pode acontecer se os milhões de pessoas que viverão no norte da Nigéria nas próximas décadas não encontrarem um futuro aqui”.

TERRA, O INGREDIENTE PRINCIPAL

Para que uma receita de desenvolvimento agroindustrial rural possa funcionar, é preciso o ingrediente principal: terra. “O problema da apropriação de terras é o mesmo em toda a África subsaariana, de leste a oeste e até o sul”, explica o agricultor keniano Mwololo. E o filme – em que Governos, empresas e investidores estrangeiros acabam, de uma forma ou de outra, ficando com as terras dos pequenos produtores locais – se repete em zonas rurais do mundo todo. Da Indonésia ou das Filipinas ao Brasil ou à Argentina, como denunciavam representantes de camponeses e indígenas no Comitê de Segurança Alimentar reunidos na semana passada em Roma. A migração, em muitos desses casos, é literalmente forçosa, com despejos e expulsões violentas.

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