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Coluna
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Quando Che Guevara deitou no chão da Capela Sistina

Quando lhe perguntaram o que queria visitar, Che surpreendeu dizendo que só queria ver a Capela Sistina

Juan Arias
Multidão de turistas contempla os afrescos
Multidão de turistas contempla os afrescosO. F. (Corbis)

Che Guevara tinha 29 anos quando, de passagem por Roma, em 27 de agosto de 1959, da cidade sagrada só quis visitar a Capela Sistina. “Quando chegou, ele se deitou no chão para ver melhor os afrescos de Michelangelo”, me contou, em sua casa em Roma, o romancista asturiano Luis Amado Blanco, que foi o lendário embaixador de Cuba junto à Santa Sé e chegou a ser o decano dos embaixadores.

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O Che estava de passagem, a caminho do Sudão em uma turnê pela Ásia e o norte da África. Tinha apenas uma manhã em Roma antes de seguir viagem. Quando lhe perguntaram na embaixada cubana o que queria visitar em Roma, esperando que respondesse o Coliseu, as Termas de Caracalla ou o Circo Máximo, surpreendeu a todos dizendo que só queria ver a Capela Sistina no Vaticano.

Não foi uma visita relâmpago, como a da maioria dos milhares de turistas que desfilam diariamente pela cidade. O revolucionário cubano dedicou toda a manhã à Capela Sistina. Ele a esquadrinhou – me contou o embaixador Amado Blanco – em todos os seus ângulos. Ficou horas ali, imóvel, às vezes deitado no chão, enquanto os turistas passavam.

Nove anos depois, faz agora meio século, o guerrilheiro em conflito com Fidel Castro e que sonhava com uma América Latina comunista, seria fuzilado na Bolívia aos 39 anos. O mito continua vivo e as relações entre a Cuba de Fidel e a Santa Sé ainda são misteriosas. Fidel sempre quis manter boas relações com os papas e teve a inteligência de deixar seu embaixador na Santa Sé durante quase 15 anos sem substituí-lo. Assim, Amado Blanco tornou-se o decano dos embaixadores no Vaticano, encarregado de fazer, uma vez por ano, um importante discurso diante do Papa e de todo o Corpo Diplomático credenciado junto à Santa Sé. Assim, durante anos, era o embaixador da Cuba comunista que pronunciava seu discurso ao Papa e aos embaixadores de todo o mundo.

Aquele estratagema de Fidel me foi contado pelo embaixador, que era um asturiano simpático, cujos pais tinham mudado para Cuba quando ele ainda era criança. Devorador de charutos habanos, ele me obrigava a acender um cada vez que me convidava à embaixada, quando eu era correspondente em Roma. Como nunca fumei, meu charuto apagava imediatamente. O embaixador – que tinha um grande senso de humor e era muito severo naquele rito – dizia que “reacender um habano era um sacrilégio papal”. Quando um apagava, era preciso acender outro novo.

O que me impressionou do embaixador quando me contou sobre a visita do comandante Che Guevara à Capela Sistina foi a surpresa que ele mesmo teve diante da insistência do jovem comandante de não querer ver mais nada em Roma, assim como as horas que passou imóvel contemplando os afrescos hoje totalmente restaurados.

São os mistérios dos personagens que entram na história, tornam-se mitos e nunca conhecemos totalmente. E essa história do Che absorto diante das pinturas da Capela Sistina me fez lembrar que no Brasil está acontecendo uma caça às obras de arte que algumas pessoas consideram provocantes. Também aquelas figuras nuas de Michelangelo sofreram a censura do papa Pio IV, mas foi em 1564, quando mandou o pintor Danielle di Volterra cobrir os nus do Juízo Final com uma braguetta, uma espécie de cueca, razão pela qual foi apelidado de il braguettone. No fim do século XX, o Vaticano, mais liberal, mandou desnudar novamente as pinturas que o Che Guevara pôde desfrutar, como continuam fazendo milhões de pessoas de todo o planeta. Poderíamos dizer hoje que os brasileiros pudicos com os nus da arte podem ser considerados “mais papistas do que o Papa”. A Capela Sistina permanece “nua”.

Mais papista do que o Papa também foi o primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que em 2008 mandou cobrir com um sutiã os seios da famosa obra A Verdade Desvelada pelo Tempo, de Giambattista Tiepolo. A obra estava exposta no Palazzo Chigi, residência do primeiro-ministro, e aparecia na televisão toda vez que este era filmado. Temendo que os telespectadores pudessem ficar escandalizados, decidiu censurá-la. O polêmico político, que chegou ao poder depois da operação Mani Pulite, a Lava Jato italiana, ainda carrega processos judiciais por supostos escândalos relacionados a sexo.

Às vezes a vida é muito curiosa.

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