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Coluna
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Ofensa de Faustão ao Anjo da Guarda não é pecado, é falta de cultura

Se Faustão conhecesse melhor a literatura sobre os anjos jamais haveria feito piada com eles, ferindo a sensibilidade não só dos simples crentes, mas também do mundo da arte e das letras

Juan Arias
Fausto Silva
Fausto SilvaDivulgação

A piada que Faustão fez com o Anjo da Guarda no domingo passado, durante seu famoso programa na TV Globo que alcança milhões de pessoas, indignou crentes e agnósticos. Entre eles Vera Schettino de Azevedo, que registrou em seu Facebook a afirmação do apresentador: “Amanhã é o dia do Anjo da Guarda. Nem sabia que existia essa porra. Serve para nada isso.”

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Não se tratou, na verdade, de nenhum pecado, mas de falta de cultura, já que a figura dos anjos é sobretudo um emblema, o símbolo do amigo fiel que estará a seu lado quando você precisar, não para te julgar, mas para que você não tropece. Tanto é assim que essa figura já se encontrava nas filosofias mais antigas e impregnou todas as artes e a literatura, assim como as teologias, a ciência quântica e até a medicina e a psicologia por seu poder terapêutico e como antídoto contra a solidão.

Pintores como Michelangelo, Giotto, Guido Reni, Rembrandt e Rafael, autores das grandes obras literárias, desde Dante na Divina Comédia a Jonh Milton em Paraíso Perdido, às obras de Jung, poetas, cineastas, grandes músicos e até astrônomos se interessaram pelos anjos que se infiltraram em todos os estilos arquitetônicos.

Esses seres misteriosos acabaram fascinando criadores como Homero, Rimbaud, Kafka, Dostoiévski, Rilke, Benjamin, Goethe, lorde Byron, Shakespeare e tantos outros. Até a internet acabou tocada pelos anjos. Segundo o filósofo Michel Serres, as milhões de mensagens que hoje cruzam as vias da comunicação instantânea são uma metáfora dos novos anjos em busca de pessoas para compartilhar a solidão moderna.

Em meu livro, La Seducción de los Ángeles (A Sedução dos Anjos), da editora Espasa, 2009, depois de investigar todos os códices antigos, laicos e religiosos, para entender melhor a figura do anjo que aparece em todas as religiões, das monoteístas às orientais e africanas, quis encerrar com versos do poeta espanhol Rafel Alberti em sua obra Sobre los Ángeles (Sobre os Anjos). Diz o poeta agnóstico:

Vino el que yo quería…

Para, sin lastimarme,

cavar una ribera de luz en mi pecho

y hacerme el alma navegable.

Os anjos são o reverso do mal. Hoje o mundo está se povoando novamente de demônios disfarçados de intolerância que envenenam nossa convivência, levantam muros e despertam velhos pesadelos de separatismos e falsos nacionalismos. Estamos todos necessitados de um plus de anjos que nos devolvam o gosto da amizade e nos exorcizem da satanidade da discórdia.

Se o grande Faustão conhecesse melhor a literatura mundial sobre os anjos jamais haveria dito que são uma “porra”, ferindo a sensibilidade não só dos simples crentes, mas também do mundo da arte e das letras. Que tal se, no próximo domingo, em seu programa, reivindicasse a figura do Anjo da Guarda que aparece até na obra Enrique VI de Shakespeare? E, cuidado!, porque por trás de uma brincadeira com os anjos pode se esconder a careta perigosa dos demônios.

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