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Fui ao casting para ser boneco na Disneyland Paris e me recusaram

Procuravam “pessoas entusiasmadas cheias de energia” e sessenta candidatos se apresentaram de moletom. Todos muito alegres e capazes de pentear a franja com os pés

Silvia Varela

Buscar trabalho é sempre um saco. Você precisa preencher perfis para parecer tudo o que não é: sério, formal, responsável, motivado... enquanto os cookies do seu computador – que te conhecem melhor do que sua mãe – dizem o contrário sobre você: em sua estante tem livros de Kafka, mas você passa o dia vendo vídeos de gatos na Internet. Em suma, acaba mentindo mais do que no Tinder e percebe que existem pessoas com as quais dormiu que sabem menos de você do que quaisquer dessas pessoas para quem enviou seu CV inflado.

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Por isso, quando um amigo me passou o contato de uma oferta de emprego com o título Casting em Madri para trabalhar dando vida aos personagens da Disneyland Paris e um cartaz cheio de sorrisos, me pareceu realmente motivante. Estamos falando de sorrisos com dentes tão brancos que cegam, desses que você fecha os olhos e continua vendo, que curam seu glaucoma. Você não consegue nem ler bem a informação do anúncio porque está cego com tanto dente e parece escutar um hi-hi-hi, um som tenso, como de bruxismo. A trilha sonora de seu sofrimento e um sorriso como os dos rapazes que te param na rua para pedir que participe de sua organização. Você mesmo sabe fazê-lo, o faz em cada casamento quando sua avó te diz “você é o próximo”.

Eu me candidato a ser um deles. Quero trabalhar na Disneyland Paris. Todos fomos criados com a Disney, aprendemos a comer os mais fracos com O Rei Leão, que às vezes vão te dar esperança, mas ficarão com o seu amigo como em O Corcunda de Notre Dame e a conseguir o que queremos com mentiras como em Aladdin. A Disney nos preparou para as frustrações e males da vida entre canções e bailes. Já é hora de delegar esses traumas às novas gerações (metido dentro de uma fantasia)!

Por tamanho e lerdeza, me vejo um pouco como o Pateta tentando imitar essa felicidade congelada da oferta de emprego. Para minha infelicidade, descubro que sou mais parecido com o malvado Bafo de Onça; e após várias tentativas de não ultrapassar a linha entre a aparente felicidade e cara de perturbado acabo me rendendo. Esse é o meu sorriso, ponto, não posso esconder todo o meu mal. Talvez se cure com minha experiência mágica ao participar em um processo de seleção para ser personagem Disney.

Leio que recomendam ir de “roupa confortável” e, ainda que não saiba exatamente no que consiste o casting, apareço no local às dez da manhã. Na fila estão uns 60 candidatos, todos de moletom, como uma vitrine da Centauro, mas com manequins super-alegres. Nunca vi ninguém tão contente antes do meio dia sem ser em uma festa, confesso. Tão contentes e tão legais. São todos legais! Eles se conhecem entre si e como nunca me viram, se apresentam e falam comigo. Eu só sou tão legal assim quando preciso pedir dinheiro e... (agora que pensei nisso, só nesse caso). Será que eles querem meu dinheiro?

Eles nos explicam que se conseguirmos o trabalho precisaremos sorrir oito horas por dia intercalando meia hora de sorrisos e meia hora de descanso, porque a felicidade também cansa. Você pode passar um dia inteiro chorando porque sua Esmeralda ficou com seu amigo (sério Corcunda de Notre Dame, quanto dano!) e tudo ok. Mas para não se cansar de ser feliz você precisa de descansos de meia hora, cronometrando para que sua alma não vá embora. Obrigado Disney por nos mostrar as misérias da vida desde pequenos.

Eu trago de casa uma entorse de joelho e outra do dedo do pé, mas quero muito ser um personagem Disney. Sempre nos dizem isso, não? “A chamada tem que vir de você, não de fora”. Abrem as portas pontualmente e entramos com nossos sorrisos por corredores e escadas e mais escadas (a chamada vem de longe, ao que parece) até chegar a uma sala de dança, dessas com espelhos em que você pode ver se quem está atrás de você olha sua bunda ao se agachar. Lá, é preciso reconhecer, surge um efeito auto erótico se te salta um músculo e ao se ver suar.

Silvia Varela

Quando a chefa ou líder do lugar vê que uma fotógrafa me acompanha deixa de sorrir e nos chama a atenção: “não queremos repórteres”. Eu explico que só queremos contar um pouco a experiência do mágico que é o evento e ela responde que sim, que é mágico, “mas queremos guardar essa magia para nós”. Chamam de magia o que a vida toda foi chamado de “política de empresa” e sua magia já não é divertida, agora é secreta e misteriosa. A chefa ou líder do lugar passa de amável chaleira de A Bela e a Fera ao monstro “polvo” de A Pequena Sereia. Ela nos manda embora do casting, andem.

Mas eu não desisto, a chamada insiste. Pelos corredores escuto o rumor de que ocorrerá um teste de perucas e se aprendi algo das despedidas de solteiro é que tudo é menos triste (não menos patético) com uma peruca e um acessório de brinquedo. Tentamos procurar a sala das perucas para compensar a expulsão. Pelo visto o casting tem três partes. A primeira que consiste em imitar vários personagens: um vaqueiro (andar como se você tivesse acabado de depilar seus testículos com cera), um pirata (o mesmo, mas com perna de pau) e um personagem livre inventado por você mesmo (eu teria feito um pirata com os testículos recém-depilados).

Vemos sair os primeiros recusados. Fico espantado que tenham eliminado seres capazes de pentear a franja com os pés, elásticos, que sabem dançar e dar saltos enquanto você pensa duas vezes quando deixa cair uma moeda no chão (“não me agacho por centavos”) por sua péssima forma próxima à invalidez. Bom, certo, há um teste de dança, uma entrevista e por fim o teste de perucas, mas nós vivemos tudo do lado de fora. A Disney nos faz ficar na porta esperando o resto dos “recusados”, mas no fundo estamos melhor na porta. Os selecionados estão tão contentes (assinam um papel de segredo profissional) como os que não conseguiram.

Silvia Varela

E é agora que vem a parte Disney do relato, a moral da história amável e odiosa que você estava esperando. E é que conheci tanta gente tão genial e amável que me pergunto “o que é isso que tenho na boca?” São meus dentes! Estou sorrindo de verdade, afortunado por ter conhecido autênticas princesas Disney. Sim, é um conceito heteronormativo, do patriarcado, totalmente antigo, mas você sabe a que me refiro. Recusado pela Disney, não vão me dizer o que posso ou não posso ser, já não quero ser o Pateta, as princesas me chamam mais a atenção, mas não as de 1,80 metro e cabeleira loira. Eu serei a princesa Disney que me der na telha. A mais entrevada, com meu vestido de Minnie Mouse.

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