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A democracia espanhola enfrenta seu maior desafio

A fracassada reforma do Estatut e a forte crise econômica explicam o abraço ao separatismo de grande parte da população da Catalunha

Ambiente neste sábado em Barcelona.
Ambiente neste sábado em Barcelona.Claudio Alvarez (EL PAÍS)

Quarenta anos depois de restabelecida a Generalitat (Governo catalão) e com ela o autogoverno mais amplo de sua história, os governantes da Catalunha decidiram romper o consenso constitucional de 1978, colocar grande parte de sua população contra o Estado espanhol e levar até o fim um referendo de secessão que coloca em risco a própria ideia de Espanha. Os catalães acordam neste domingo cheios de incógnitas: se ocorrerá uma verdadeira votação ou se será uma mobilização em massa, se a fratura social provocada pelo soberanismo explodirá na rua ou se o desafio colocado em cena chegará a sua consumação com uma declaração unilateral de independência. Também confirmarão uma certeza: nem a política nem seus atores souberam estar à altura e evitar o choque.

Desde o início do horário da votação, às 9h da Espanha (4h de Brasília), foram vistas cenas de policiais entrando nos colégios e confiscando urnas, em momentos de muita tensão. Entre eles, o local onde o presidente do Governo catalão, Carles Puigdemont, votaria. Ele, entretanto, conseguiu votar, em outro colégio eleitoral.

La Guardia Civil entra en el colegio donde iba a votar Puigdemont

Secuencia completa de la entrada de la Guardia Civil por la fuerza en el centro de Sant Juliá de Ramis, colegio donde iba a votar Puigdemont en Girona http://bit.ly/2yPMkOA

Gepostet von El País am Sonntag, 1. Oktober 2017

A pergunta mais repetida nos últimos anos foi “em que momento começou essa crise?” e parece haver amplo consenso entre políticos, acadêmicos e imprensa em situá-lo na sentença do Tribunal Constitucional de 28 de junho de 2010, que cortou 14 dos 223 artigos do Estatuto de Autonomia, reinterpretou outros 27 e negou valor jurídico ao termo “nação” contido no preâmbulo. O texto estatutário tinha sido aprovado pelo Parlamento catalão e o Congresso dos Deputados, e referendado pelos catalães quatro anos antes. Esse consenso, no entanto, está repleto de matizes que tornam muito mais complexa toda essa história.

A reforma do Estatut não tinha suscitado em suas origens o entusiasmo de muitos catalães. Foi um compromisso eleitoral e um empenho de Pasqual Maragall para demonstrar que o catalanismo socialista era capaz de atingir maiores cotas de autogoverno e um encaixe mais estável da Catalunha na Espanha. A promessa do então ainda candidato à Presidência do Governo, o socialista José Luis Rodríguez Zapatero, no encontro do Palau Sant Jordi em novembro de 2003 — “Apoiarei a reforma do Estatuto que for aprovado pelo Parlamento catalão”— se tornou um bumerangue, por não ter sido cumprida, o que acabou desprestigiando todos os protagonistas desse drama. A tramitação da nova lei escapou das mãos do PSC, foi abandonada por ser considerada pouco ambiciosa por seu parceiro no tripartite, o ERC, e acabou ficando nas mãos do CiU. Seu líder naquele momento, Artur Mas, acabou negociando a articulação final em um encontro secreto em La Moncloa, com dezenas de cigarros na frente e à margem do Parlament, com o então já presidente do Governo, Zapatero.

O Estatut teria ainda de passar pela Comissão Constitucional do Congresso, onde sofreria a “escovada” —nas palavras do presidente da comissão, o socialista Alfonso Guerra— de alguns artigos de constitucionalidade duvidosa, antes de ser aprovado pelas Cortes, com o voto contrário do PP e do ERC.

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Em 18 de junho de 2006, finalmente, os catalães votavam em um referendo. A abstenção superou os 50% (50,7%: dez pontos acima dos registrados em 1979, quando se votou o primeiro Estatut). Aí tudo poderia ter acabado, mas o PP decidiu levar sua batalha aos tribunais. Em 31 de junho, Soraya Saénz de Santamaría e Federico Trillo, em nome do partido, apresentavam para a Constitucional um recurso contra 114 artigos e 12 disposições da lei. Começava uma batalha judicial que se prolongaria por quatro anos e que acabaria com a recusa de vários magistrados do alto tribunal, a divisão em seu seio em dois blocos polarizados e a erosão de grande parte de seu prestígio.

Golpe mortal

Em 28 de junho de 2010 chegou a sentença. O tribunal preservou a maior parte dos artigos, mas deu um golpe mortal a pretensões como a de declarar preferencial a língua catalã, constituir um Poder Judicial catalão autônomo e ampliar as competências fiscais da comunidade. E, sobretudo, fechou questão quanto a tirar valor jurídico da proclamação da Catalunha como nação.

O conflito adormecido estourou no pior momento, em meio à maior crise econômica sofrida pela Espanha em décadas. O separatismo aproveitou para trazer sua causa, historicamente minoritária, a todos os indignados que, como o resto da Espanha, começavam a questionar a ordem constituída e que encontravam um veículo para suas aspirações na ideia de começar desde o início em um novo Estado. Até o presidente da Generalitat, o socialista José Montilla, se somou a essa onda de indignação e arremeteu contra o Tribunal Constitucional —“lamentavelmente desacreditado e moralmente deslegitimando para ditar essa sentença”, disse— em um discurso institucional televisionado. E sofreu as vaias, diante de uma manifestação de 400.000 catalães, com o cartaz “Somos uma nação” em sua cabeça.

A chegada ao Palau de la Generalitat de Artur Mas, em dezembro de 2010, foi seguida pela de Mariano Rajoy ao palácio de La Moncloa um ano mais tarde. O novo president, um tecnocrata moderado forjado na política à sombra todo-poderosa de Jordi Pujol, prometia todo seu empenho em consertar a economia da Catalunha e se apoiou nisso no Parlamento —ficou a quatro cadeiras da maioria absoluta— no PP. Pouco podia suspeitar da guinada futura de um político que, anos antes, no livro Qué piensa Artur Mas, tinha escrito: “Vejo o conceito de independência como antiquado e um pouco oxidado”, e que apostava na ideia de uma Espanha plurinacional.

Fazer frente à crise econômica não seria tarefa fácil. Os cortes drásticos em saúde e educação agitaram as ruas. A Catalunha sofreu uma redução de seu gasto social de 26% entre 2009 e 2015 (mais de 5 milhões de euros, cerca de 16 milhões de reais), liderou o número de despejos e viu sua dívida disparar. Mas sentiu na própria pele a indignação desatada em junho de 2011, quando teve de ir de helicóptero à sede do Parlament, onde se debatiam os Orçamentos. Mais de 2.000 cidadãos indignados tinham rodeado a Câmara catalã e produziram cenas de violência nunca antes vistas em uma sede parlamentar, com deputados insultados e agredidos e violentos destacamentos policiais.

O separatismo se fortalecia na onda de indignação. Artur Mas foi testemunha, da distância de sua posição institucional e sem se envolver, da maré humana que saiu à rua na celebração da Diada, a festa da Catalunha, de 11 de setembro de 2012. A Guarda Urbana de Barcelona estimou a presença em um milhão e meio de pessoas.

O argumento era oferecido de bandeja. Era necessário buscar um culpado fora da Catalunha, e esse não era outro senão o Estado e seu Governo central, com Rajoy à frente. Começaram então a proliferar os argumentos que alimentavam um slogan perigoso como a pólvora: “A Espanha está nos roubando”. Avivou-se a batalha das balanças fiscais e conseguiu-se transmitir a grande parte da população a ideia —em alguns aspectos justificada, mas exagerada de qualquer forma— de que a Catalunha dava mais do que recebia; que sofria uma afronta, em relação ao resto das comunidades autônomas, sofrida na carne, com piores serviços e infraestrutura, pelos catalães humildes.

Chantagem, desprezo

A Generalitat abraçou essas reclamações e as transformou em uma proposta que era uma verdadeira bomba-relógio: o Pacto Fiscal. Um arranjo econômico semelhante ao que desfrutam o País Basco e Navarra. A ruptura da caixa única do Estado e a possibilidade de a Catalunha —com 20% do PIB espanhol— gerir sozinha suas receitas e gastos, em troca de entregar ao Governo central uma cota anual para os gastos comuns e uma limitada solidariedade interterritorial. Isso em um momento no qual o Governo do PP devia fazer frente a uma situação econômica catastrófica que dava a entender que o país acabaria resgatado financeiramente pela União Europeia. Rajoy e Mas se reuniram em La Moncloa em 20 de setembro de 2012. O não à petição de mais autonomia fiscal foi rotundo. O primeiro interpretou a proposta como chantagem. O segundo, como desprezo. A partir desse momento tudo descarrilaria.

Sete dias depois da malograda reunião, o Parlament lançava o desafio. Aprovava uma resolução na qual sustentava: “A Catalunha deve começar uma nova etapa baseada no direito de decidir”. E pedia à Generalitat que preparasse uma consulta popular, “prioritariamente na próxima legislatura”. A linguagem já era claramente independentista. Fazia-se referência ao “direito imprescritível e inalienável da Catalunha à autodeterminação, como expressão democrática de sua soberania como nação”.

O sentimento separatista, ainda em minoria, ia crescendo nas pesquisas. Mas o principal beneficiário não seria o nacionalismo de sempre, o de Convergència i Unió, que mostrava um claro oportunismo ao pegar esse bonde. A recompensa seria para um partido cujos resultados tinham sido modestos até bem pouco tempo, apesar de sua relevância histórica: Esquerra Republicana de Catalunya (ERC).

Artur Mas, confuso pelo fervor da rua, adiantou em dois anos as eleições autonômicas. O golpe foi duro. Nesse pleito a CiU perdeu 12 cadeiras e a ERC tornou-se a segunda força do Parlament, com 21 deputados, e com o motor impulsionador da guinada independentista das instituições catalãs.

Um novo Parlament aprovou uma declaração de soberania e o direito de decidir do “povo da Catalunha”. Era janeiro de 2013. E começou então um jogo de gato e rato no qual, a cada decisão da Câmara catalã ou do Govern, o Executivo central de Rajoy respondia com um recurso ante o Tribunal Constitucional. Convencido de que o que não é legal simplesmente não é possível, o Governo de Rajoy foi incapaz de responder com uma proposta política ou com um projeto para a Catalunha a uma ofensiva que violava várias vezes as leis e a Constituição enquanto vendia com inteligência seu objetivo épico —o democrático e pacífico Davi catalão diante do Golias representado pelo Estado espanhol— para uma parte cada vez mais numerosa de catalães.

Estabeleceu-se data para um referendo de independência: 9 de novembro de 2014. Fixou-se a pergunta dupla: “Você deseja que a Catalunha se torne um Estado? Em caso afirmativo, você deseja que a Catalunha seja um Estado independente?”. E previu-se dotação econômica e logística. O Governo de Rajoy empreendeu uma corrida contra o tempo para frear o desafio nos tribunais, e conseguiu: o Constitucional determinou a suspensão do 9-N. A vitória, no entanto, saiu muito cara. Artur Mas pareceu resignado a acatar a sentença, mas passou a dominar o que continuava em andamento, o “processo participativo” (que também foi suspenso pelo tribunal, apenas quatro dias antes da data de votação). Dúvidas e discussões no seio do Governo de Rajoy —alguns preferindo tirar a importância da consulta e olhar para o outro lado, e outros defendendo detê-la— levaram à falta de reação. Cerca de 2,3 milhões de catalães foram às urnas. Houve 33% de participação. Sem surpresas: 80% optou pela independência.

Erro de cálculo

Aos olhos de muitos catalães, tinha-se votado. E se consolidou a ideia de que em um futuro próximo seria possível voltar a fazê-lo, com maiores garantias. Só depois o Governo, arrependido de seu erro de cálculo, realizou ações penais contra Artur Mas e os principais organizadores da consulta no Govern.

À medida que a ideia da independência crescia, o CiU se apequenava. Os escândalos em torno da família Pujol e do financiamento do partido (o caso dos 3%), as tensões internas entre os colegas de coalizão e o sentimento generalizado de que seu separatismo era de conveniência, levaram grande parte do eleitorado a preferir o original à cópia. O CiU se desfez. Convergència, que mais tarde se refundaria como Partido Democrata Europeu da Catalunha (PDeCAT), camuflou sua deterioração sob a coalização Junts pel Sí, junto ao ERC. Nas eleições de setembro de 2015 conseguiram 62 assentos. Nem com essa aliança obtiveram maioria absoluta.

Ia entrar em jogo um novo ator que aceleraria a ruptura, radicalizaria o processo e forçaria a romper as pontes que os mais moderados não se decidiam a romper: as Candidaturas de Unidad Popular, a CUP, uma extrema esquerda independentista por ser antinacionalista, herdeira daquela esquerda radical em cujo entorno surgiu, no fim dos anos 1970 e início dos 80, o terrorismo do Terra Lliure. Depois de meses de interinidade, a CUP se fez com Artur Mas à frente —já na época imputado pelo 9-N em um processo que acabaria com sua inabilitação— e impôs, em troca de seu apoio parlamentar para constituir um novo Govern, um desconhecido chamado Carles Puigdemont. Até então tinha sido prefeito de Girona. A CUP sabia o que fazia. Tinha eleito o mais radical e independentista das fileiras da antiga Convergència.

Empurrado pela CUP, o novo Govern, com Puigdemont na presidência e o líder da ERC, Oriol Junqueras, na vice-presidência, começaram os preparativos para a “desconexão” da Catalunha. Colocou-se data para um novo referendo: 1 de outubro de 2017.

Dessa vez o desafio teria um aliado muito poderoso: o período mais longo de interinidade da política espanhola. Quase um ano com um Governo provisório do PP incapaz de abordar qualquer coisa além das tarefas ordinárias, um PSOE desarticulado em sua própria guerra interna e uma formação populista de peso relevante parlamentar, Podemos, voltado a abalar as bases institucionais.

Todo esse tempo foi aproveitado para criar a ficção de uma realidade legal e administrativa paralela à legalidade espanhola: novas “estruturas de Estado” para a Catalunha (sua própria agência tributária, seu próprio “ministério” de Assuntos Exteriores...). Começavam a se preparar em segredo, à margem do Parlament, sucessivos rascunhos de uma futura lei de transição jurídica e uma lei de referendo. E, também da sombra, a Generalitat colocava em andamento a logística e a mídia para realizar uma consulta ilegal.

Diante do golpe constitucional que se armava, o Governo —Rajoy já empossado graças à traumática abstenção do grupo parlamentar socialista— se preparou para atacar com todo o peso do Estado. Tratava-se de parar a todo custo a nova ofensiva. Dessa vez, conjurou-se em La Moncloa: não haveria referendo. A gravidade do desafio lançado obrigava a não descartar nenhuma resposta, mas apostou-se tudo na contundência dos tribunais. Possíveis respostas políticas (uma oferta de projeto futuro para a Catalunha) ou constitucionais (a intervenção temporal das instituições autonômicas) foram descartadas como inúteis ou arriscadas demais.

E nesse jogo de astúcia jurídica mútua, impedida já qualquer outra saída, se mantiveram os dois atores principais desse drama. A Generalitat, impedida por suas próprias ações de voltar atrás, mas acuada frente ao Estado depois que alguns cidadãos decidiram que essa vez é a definitiva. E o Governo, empenhado até o fim em que a realidade, por mais obstinada que seja, se não é ilegal, não existe.

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