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Razões para enfrentar os assediadores da Internet

A historiadora britânica Mary Beard reflete sobre como lutar contra a agressividade, os insultos e a irritação nas redes sociais

Fly swatter.
Fly swatter.Jens Mortensen

O volume de comentários com insultos e agressões nas redes sociais está insuportável. Deparo o tempo todo, dia após dia, com tuítes em que me chamam de farsante, maricas (sic), fraude, merda, mentirosa, gorda, louca, que não sei latim... É exasperante. A isso se acrescentam as provocações e os questionamentos constantes, onde se distorce minhas palavras e se aproveita qualquer oportunidade para dizer que mudei de critério, me acovardei ou o que seja. É preciso fazer um grande esforço para se mostrar educada e calma diante dessa enxurrada.

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Vou explicar os antecedentes. Nas últimas semanas, me vi envolvida em uma espécie de tempestade no Twitter, sem que os responsáveis pela rede social tenham conseguido fazer muito para detê-la. O gatilho desta vez foi uma discussão sobre a diversidade étnica do Reino Unido na época romana (parece algo inócuo, não? pois continuem lendo). Tudo começou em julho, quando um comentador criticou um vídeo educativo da BBC sobre uma família na Bretanha romana, na qual o pai, um soldado de alto escalão, era negro (eram desenhos animados, então não é possível precisar muito mais). O comentador se queixou no Twitter e em uma página de Internet ligada à chamada alt+right, a direita alternativa. “A esquerda”, escreveu, “está literalmente dando um jeito de reescrever a história para fingir que na Grã-Bretanha sempre houve uma grande imigração.”

Algumas pessoas se adiantaram a mim na rejeição da crítica e descreveram muitas das provas existentes sobre a diversidade étnica e cultural da região. Eu me somei bem mais tarde e disse que o vídeo era “muito certeiro”. Por exemplo, acredito que o personagem da BBC se baseava vagamente (com certas variações cronológicas) em Quintus Lollius Urbicus, um homem procedente da atual Argélia, que chegou a ser governador da Bretanha; é possível visitar sua tumba nas ruínas de Tiddis, no país magrebino. Se quiserem mais dados, vejam os blogs dos professores Neville Morley e Matthew Nicholls. Sem dúvida, agradeço os dois, como a tantos outros, por todo o apoio que me ofereceram.

Depois de meu breve comentário, começaram os ataques, que se prolongaram durante semanas. Sem chegar a ameaças de morte (como aconteceu com minha colega norte-americana Sarah Bond, que teve a ousadia de dizer que as estátuas clássicas, em sua origem, não eram brancas), formaram uma torrente de insultos dos mais agressivos contra todos os aspectos de minha pessoa, desde minha competência como historiadora e meus pontos de vista elitistas, próprios de quem vive em uma torre de marfim, até comentários sobre minha idade, minha silhueta, meu sexo (velha louca, obesa etc.). Foram bem contrabalançados pelas demonstrações de apoio (agradeço novamente a todos) e, sozinhos, não são mais do que irritantes, mas o efeito acumulado é muito desagradável.

A coisa piorou quando Nassim Nicholas Taleb [ensaísta que mora nos EUA] interveio, e não para me dar razão. Sua participação desatou ainda mais insultos. Uma pessoa, por exemplo, postou uma foto de uma mensagem de Taleb dirigida a mim: “O que você acha disso?” Quando respondi que me sentia ligeiramente agredida, outro respondeu: “Não, isso é um verdadeiro debate. Se houvesse mais, talvez você fosse melhor historiadora”. Essa mesma pessoa publicou depois uma caricatura de uma rã que tapava a boca de uma mulher com a “mão”, o que, sem dúvida, dá uma ideia do tom sexista: enquanto Taleb era o professor Taleb, eu era a senhora Beard (os títulos acadêmicos me importam bem pouco, mas é interessante a diferença de tratamento).

Taleb foi um pouco menos insultante, mas só um pouco. Acusou-me de dizer bobagens e tentou transformar a discussão em um tipo de briga de galo: “Fui citado em publicações acadêmicas mais vezes em um ano do que você em toda a sua vida!”, chegou a escrever em dado momento. Acho que mantive o tom educado o tempo todo, apesar de achar que são outros que terão de dizer. O professor Taleb se irritou quando eu disse que tinha lido seu best-seller sobre os riscos financeiros e políticos, mas nada mais. Na verdade, o que eu quis dizer era que conhecia uma obra dele, mas não todas.

Sejamos justos com o Twitter. Troquei com eles mensagens amistosas, compreensivas e prestativas, e lhes agradeci por isso, mas não posso dizer que tenham servido para muita coisa. O problema era que, no julgamento do Twitter, muito poucos tuítes eram realmente denunciáveis. Alguns eram, e não fui a única a apontá-los, com um sucesso moderado (é preciso aceitar, apesar de não concordar, que a opinião do Twitter sobre o que infringe suas normas pode ser diferente da opinião de diferentes usuários).

O que fazer, então? Por que não bloqueei os comentários, como muitos me sugeriram? Entendo o ponto de vista deles, mas fico em dúvida quanto a bloquear outros no Twitter. Em outra ocasião recebi ameaças de morte na Rede, e sei que convém vigiar os ataques verbais para garantir que fiquem nisso e não descambem para que você encontre em sua porta uma granada de mão pela manhã. Bloqueá-los não faz com que deixem de comentar, só serve para não vê-los mais, e me parece que é como se deixássemos o pátio do colégio nas mãos dos valentões. Além disso, apesar de que certamente ninguém vai fazer mudar de opinião os mais convictos, talvez seja possível com algum hipócrita. E ainda demonstrar a todo mundo que é possível defender posições. Bater em retirada é o conselho que as mulheres vêm recebendo há séculos. Não responda, olhe para o outro lado. Aguente e cale-se.

Imagem do vídeo da BBC que gerou a polêmica.
Imagem do vídeo da BBC que gerou a polêmica.

Que é também (me dói dizer) o conselho que me deram alguns de meus mais carinhosos defensores. Quando, alguns dias depois, tudo voltou a estourar, graças a um tuíte do professor Taleb, afirmei que, em minha opinião, aquela discussão concreta já estava esgotada e que devíamos mudar de assunto. Pouco depois recebi várias respostas conciliadoras, do tipo: “Oh, Mary, deixe estar, querida, esqueça, bloqueie-o...”. Pensei que o que tinha feito era exatamente deixar para lá. Tinham acabado de me atacar outra vez e logo estavam me recomendando que não dissesse nada.

Definitivamente, quando uma mulher abre a boca para protestar, os que são contra dizem que é uma “reclamona” e os que estão do lado dela, pelo menos alguns, dizem que é melhor que se cale. Nada mal.

Dessa história tão lamentável é possível extrair várias reflexões:

1. Opinar sem saber

Há um problema de fundo. Sempre pensei que a História não é algo sobre o qual só podem falar os historiadores profissionais, e não gosto muito das pessoas que dizem que “li mais do que você sobre o assunto, então tenho razão”. No entanto, nessa discussão, tive de perguntar várias vezes: “Você leu algum livro sobre a história da Bretanha romana?”. Uns poucos tiveram a decência de responder que não. E era evidente que havia vários casos de ignorância. Ao falar da África subsaariana, mais de um postou um mapa do Império Romano para dizer que eu era idiota se pensava que poderia haver gente proveniente dali na Grã-Bretanha da época, porque o império não tinha chegado tão longe. Seriam necessários muito mais caracteres, mais de 140, para explicar por que as fronteiras convencionais vistas no mapa eram enganosas, e por que o mundo de então era muito mais “romano” do que essas fronteiras indicavam.

Outros queriam que lhes desse um número exato da “proporção” de minorias étnicas na Bretanha romana, sem se dar conta, ao que parece, de que não temos nem ideia de quanta gente em geral vivia na época no país, nem de que não se pode falar de composições típicas, devido às enormes discrepâncias que havia entre zonas urbanas e rurais, e zonas militarizadas e não militarizadas. O vídeo da BBC não dizia que a família que aparecia fosse “típica” (apesar de o anúncio em sua página o sugerir, o que talvez tenha levado ao engano).

2. Nem tudo é certeza

Em geral, entre a maioria dos tuiteiros e comentadores, notava-se uma ânsia por certezas absolutas sobre a diversidade do passado (e, quando alguém sugeria que essas certezas eram impossíveis, os comentários passavam a ser: “ou seja, vocês historiadores não sabem de nada”). Do que não resta dúvida alguma é que o Império Romano —Bretanha incluída— tinha grande diversidade étnica e cultural, como mostram os sírios em Bath, ou Quintus Lollius Urbicus, ou o etíope que, segundo um escritor romano tardio, conheceu Septimius Severus na Muralha de Adriano, ou o maravilhoso casal de South Shields, Barates e Queenie (Regina), ele de Palmira e ela, de Essex. Isso é indubitável.

O ruim é que apresentar casos concretos com laços étnicos específicos é muito mais difícil, e exige o uso de uma grande variedade de técnicas históricas e científicas. Sequer no caso de Septimius Severus, o primeiro imperador romano procedente da África (Líbia), sabemos com certeza a cor de sua pele, quanto tinha de “nativo” e quanto de descendente de um colono italiano.

3. Interpretar com cuidado

Muita bobagem foi dita, temo, sobre dados genéticos que, para muita gente (Taleb incluído), pareceram ser o instrumento mágico capaz de demonstrar, por exemplo, que não houve presença de subsaarianos na Bretanha romana. Não é verdade, não demonstram nada disso; além disso, para usar esses dados genéticos, é necessário interpretá-los com extremo cuidado. O blog de Neville Morley é muito bom nesse sentido. O principal estudo no qual se baseiam quase todas essas afirmações é o que fez o Wellcome Centre de Oxford sobre a população britânica moderna, que demonstra que, na população “nativa” tradicional do Reino Unido (antes das últimas ondas de imigração), o componente de DNA subsaariano é muito escasso (não inexistente, mas muito escasso). De modo que Taleb se dedicou a me ridicularizar: “Onde foram parar esses genes? Uma possível explicação é que extraterrestres tenham levado-os embora. Afinal, não sou nenhum especialista em história dos extraterrestres”. Muito bem. Mas acontece que no estudo de Oxford também aparecem muito poucos genes normandos, e é indubitável de que eles vieram em grandes quantidades. Pode haver anomalias científicas, mas, como diz Morley, a pergunta mais importante é por que restou tão pouca herança genética quando há provas claras de que houve diversidade (talvez os romanos e os normandos tenham se misturado pouco; talvez, quando os romanos deixaram a Grã-Bretanha, os “casamentos mistos” tenham partido com eles). Não há necessidade de nenhum extraterrestre.

4. Recorrer ao insulto

Acho muito triste que não possamos manter uma discussão razoável sobre um tema como a composição étnica e cultural da Bretanha romana sem a necessidade de recorrer ao insulto, ao ataque, à misoginia e à linguagem belicosa. Dá poucas esperanças quanto à possibilidade de manter qualquer discussão sobre a diversidade étnica atual.

Olhei os perfis do Twitter de vários dos que caíram em cima de mim. Alguns têm o aspecto típico dos solitários descontentes. Quero deixar muito claro que nem direita nem esquerda detêm o monopólio da má educação na rede. Não estou dizendo isso. Mas deparei com uma faceta especialmente desagradável da direita, muitas vezes reconhecida por seus apelidos no Twitter. Coisas como (estou inventando) “punho de ferro”, “cabeça raspada” ou, às vezes, algo em latim macarrônico. E também com uma grande quantidade de tuítes completamente desproporcional em relação aos seguidores que têm.

Quase todos esses homens (são maioria, mas não há só homens) são mais patéticos do que maus. E não tenho certeza se quero desperdiçar o tempo dos tribunais com eles. Mas não sei como é possível convencê-los de que deixem de infernizar a vida de outras pessoas (eu tenho sorte, porque sou forte e tenho apoios muito valiosos, mas outros sofrem muito mais). Prefiro, sem dúvida, discutir sobre as discrepâncias acadêmicas de forma educada, nem entrar em brigas com frases como “não diga idiotices”. Também não quero viver em um mundo no qual ninguém nunca se irrite, no qual não haja insultos jamais. Mas também não quero que ninguém seja grosseiro, nunca.

Como conseguir que essas pessoas deixem de praticar assédios coletivos como esse? Aceitam-se sugestões.

Mary Beard é professora de estudos clássicos na Universidade de Cambridge e autora de SPQR: Uma história da Roma Antiga (Crítica). Recebeu em 2016 o prêmio Princesa das Astúrias de Ciências Sociais.

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