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“Minha família quer que eu venda tudo e vá embora daqui”: a nova vida sem rotina na Rocinha

Sensação de insegurança vence cerco militar. Boatos disparam e moradores cumprem toque de recolher

Uma criança e um policial na quadra onde moradores da Rocinha pediram à volta da sua rotina.
Uma criança e um policial na quadra onde moradores da Rocinha pediram à volta da sua rotina.MAURO PIMENTEL (AFP)
María Martín

Luiza tem 36 anos e três filhos. É negra, magra e com jeito de guerreira. Representa ela sozinha quase tudo o que significa ser morador da Rocinha nesses últimos dez dias. O sonho dela coincide com o de boa parte da comunidade: “Voltar à minha vida”. É até simples.

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No domingo passado, quando um bando de criminosos invadiu a comunidade em um acerto de contas entre traficantes da região, Luiza se jogou no chão. Mora no miolo da favela, onde os donos do tráfico iam e vinham armados até os dentes. Colocou na caçula de três anos uns fones de ouvido e apertou o play – "quem sabe se a música disfarçava o tiroteio" – e protegeu com os braços os dois maiores, de seis e 12 anos, deitados entre o rack e o sofá.

Daquele dia ficou o tremor que ainda lhe percorre o corpo travado. E também uma casa furada por balas de fuzil. Desde então, os filhos não foram para a escola: primeiro por medo de mais confrontos e, depois, desde a sexta feira, quando 950 militares cercaram o bairro, porque o transporte escolar não pode passar pelos blindados que ocupam as estreitas e serpenteantes ruas da favela. Como eles, mais de 3.000 crianças que estudam na comunidade têm suas escolas fechadas, com o agravante de que muitas delas obtêm no colégio as principais refeições do dia. Luiza decidiu enviar os filhos à casa do ex-marido na Tijuca, na zona norte da cidade. "Eles não querem mais voltar", desabafa. Ela, funcionária do transporte escolar na comunidade, nem pode trabalhar. Outras suspenderam sua rotina e seus trabalhos para cuidar dos filhos até a normalidade retornar.

Luiza denuncia, como outros moradores, ter tido sua casa invadida pela polícia. Estava no chuveiro quando um grupo de cinco soldados do Bope arrombaram sua porta na terça-feira. Sem mandado, assegura. “Enrolei a toalha correndo e fui ver o que acontecia. Me chamaram de piranha e de puta", susurra no ouvido. "Não têm nenhum tipo de respeito com a gente. Tenho até vergonha de repetir tudo o que me xingaram”, conta. “Reviraram a casa toda, jogaram a TV no chão e disseram que estavam mortos de fome. Foram na geladeira e comeram todos os iogurtes e as frutas que eu tinha comprado para os meus filhos”, continua, agora segurando as lágrimas. "Minha família quer que eu venda tudo e vá embora daqui. Mas o barraco onde eu moro é simples, mas é meu, trabalhei muito mesmo para conseguir", diz, já aos prantos.

"Como você vai abrir uma escola se você tem esse medo no ar?"

Relatos como os de Luiza repetiam-se nesta terça-feira em uma quadra esportiva da comunidade onde meninos jogavam futebol e cachorros pulguentos coçavam as orelhas. Convocados pela associação de moradores, mototaxistas, comerciantes e vizinhos reuniram-se em presença do comandante da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha, o Major Cunha Neves, para exigir a volta da rotina.

Os postos de saúde, assim como as escolas, continuam fechados, o fornecimento dos comércios alterado, as linhas de ônibus interrompidas e o pânico à solta."Vivemos o caos. Pedimos paciência para colocar pedra sobre pedra. A sensação é de insegurança. Como você vai abrir uma escola ou um posto de saúde se você tem essa sensação de medo no ar?", questionou aos moradores um representante da Prefeitura. O major, que encorajou os vizinhos a denunciar os abusos, afirmou que embora não haja "indicativo que impeça o funcionamento" das escolas e outros serviços, entende que há um clima de instabilidade, agravado ainda pela proliferação de boatos.

“Para a gente é uma proteção eles [os militares e a polícia] estarem aqui. Mas precisamos perder o medo e voltar ao normal. A gente tem toque de recolher. Às 17 horas quem comprou, comprou, e quem não comprou não tem nada para comer”, lamenta uma mãe de dois filhos. Do seu lado, outra mãe está há dois dias sem aparecer na livraria na qual trabalha. “Não tenho com quem deixar as crianças. Sorte que tenho um patrão abençoado e ele está vendo tudo pela televisão e sabe da situação, mas não posso mais faltar. Não sei como eu vou fazer amanhã”, explica.

Num grupinho e com pouca vontade de falar, os mototaxistas reclamam da queda de movimento, e da renda, na comunidade. “Aqui embaixo parece que está tudo normal, mas lá em cima as pessoas não estão saindo de casa por medo”, diz um deles sem se identificar. Os motoqueiros, segundo a Polícia Federal, eram submetidos pela quadrilha local ao pagamento de taxas para trabalhar. Uma imposição que rendia ao líder do tráfico, Rogério 157, cerca de 100.000 reais por mês. Foi esta prática, imposta também na distribuição de botijões de gás e de água, que teria incomodado o ainda dono do morro, Nem da Rocinha – preso numa cadeia de segurança máxima em Rondônia –, e contribuído à declaração de guerra ao seu sucessor.

Rogério 157 é hoje um dos homens mais procurados do Rio – o Disque Denúncia oferece 50.000 reais por informações que levem à sua captura –, mas, a pesar do cerco militar, ele teve uma agenda intensa nos últimos dias. Segundo a imprensa local, o traficante teria tentado negociar sua rendição até a última sexta-feira, desistido, fugido pela mata, costurado sua adesão à facção rival Comando Vermelho, sequestrado um taxi para voltar à favela e fugir de novo para se refugiar numa outra comunidade. Enquanto isso, a Rocinha, a maior favela do Rio, cobra sua vida de volta.

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