_
_
_
_
_

Escândalo de espionagem coloca finanças do Vaticano sob suspeita

Na véspera de sua demissão, auditor denunciou uma armação para derrubá-lo e evitar que continuasse investigando as contas

Daniel Verdú

Uma nova guerra foi desatada dentro da área de finanças do Vaticano. O ex-auditor Libero Milone, que se demitiu em junho passado, acusou a polícia e o secretário-interino de Estado da Santa Sé de forçarem sua queda para acobertar o resultado de suas investigações. O Vaticano, em um furioso comunicado, respondeu neste domingo que Milone espionava a vida privada de altos funcionários da Santa Sé. Uma crise que chega no momento em que o departamento financeiro está acéfalo devido à saída dele e de seu superior, o cardeal George Pell, acusado de abusos contra menores.

O papa Francisco conversa em abril de 2016 com Liberto Milone, então auditor gerall do Vaticano.
O papa Francisco conversa em abril de 2016 com Liberto Milone, então auditor gerall do Vaticano.OSSERVATORE ROMANO

Milone, numa entrevista ao Corriere della Sera concedida no escritório dos seus advogados, afirma ter sido obrigado a assinar uma carta de demissão após ser falsamente acusado de desviar verbas do Vaticano.

A notícia da demissão do ex-auditor, de 69 anos, em 19 de junho, causou uma enorme surpresa. Ele havia sido nomeado por Francisco em maio de 2015 com a incumbência de melhorar a transparência e atualizar a contabilidade. A opacidade e as acusações de lavagem de dinheiro cercaram durante anos as finanças vaticanas, e Milone, uma figura externa e com amplos poderes, devia ser rigoroso e aplicar pulso firme. Era conhecido por seu caráter forte e por sua independência para chegar a qualquer canto do Vaticano, por mais alto que fosse. Mas, apenas dois anos depois de ser nomeado, apresentou sua renúncia, supostamente em “comum acordo” com a Santa Sé.

Mais informações
Diretor de finanças do Vaticano, é acusado de abusos sexuais
Um coroinha no inferno
O grande silêncio de Joseph Ratzinger

Segundo a versão de Milone, em 19 de junho, horas antes da demissão, foi chamado pelo secretário-interino de Estado do Vaticano (equivalente a um primeiro-ministro interino), Giovanni Angelo Becciu, que lhe resumiu o assunto observando que “a relação de confiança com o Papa diminuiu” e que o próprio Francisco havia solicitado sua demissão. Nada encaixava para o auditor, que já tivera informações roubadas do seu computador em 2015, sem que o caso fosse resolvido, e que também suspeitava estar sendo espionado.

Quando chegou ao gabinete do chefe do Serviço de Segurança e Proteção Civil do Vaticano, Giandomenico Giani, este se comportou de forma “agressiva” para que confessasse delitos que, segundo ele, não tinha cometido. Especificamente o desvio de 25.000 euros para limpar seu escritório de possíveis dispositivos de espionagem e “ter procurado impropriamente informações sobre expoentes do Vaticano, fatos pelos quais estava sendo investigado havia sete meses”. Mostraram-lhe, segundo relata ao Corriere, uma gravação com sua voz para lhe amedrontar. “Não me demiti voluntariamente, ameaçaram me prender.”

Depois daquele encontro, Milone, alguns policiais e os bombeiros do Vaticano se dirigiram ao seu escritório para arrombar os armários de funcionários que não estivessem presentes e levar documentação confidencial. Desde então, o auditor tenta manter contato com o papa Francisco para explicar a situação, mas afirma não ter recebido resposta. “Evidentemente, não queriam que eu contasse algumas coisas que tinha visto. Só queria fazer algo de bom para a Igreja, reformá-la como tinham me pedido. Não me deixaram.”

O próprio Becciu respondeu a ele, através da Reuters. “Ele transgrediu todas as normas e espionou a vida privada de seus superiores e da sua equipe, incluindo a mim. Se não tivesse aceitado se demitir, o teríamos processado”, afirmou. Milone, com um histórico irrepreensível à frente de cargos semelhantes na Fiat e nas Nações Unidas, trabalhava com uma equipe de 14 auditores e dois assistentes. Entretanto, não foram revelados os nomes dos espionados nem o resultado dessas investigações. Milone afirma que não pode fornecer tais dados por respeito a cláusulas do seu contrato. Entretanto, espera que os documentos que foram confiscados em 19 de junho surjam em algum momento. Algo que não seria estranho num clima de guerra como o que está se formando.

Numa exceção à sua praxe de não comentar assuntos internos, o Vaticano reagiu às acusações, na manhã de domingo, com um furioso comunicado em que expressava sua surpresa e lamentava as declarações do ex-colaborador, já que ambas as partes tinham concordado em manter em segredo os motivos da demissão. “Ocorre, infelizmente, que o escritório de Milone, excedendo suas competências, contratou ilegalmente uma empresa externa para realizar atividades de investigação da vida privada de expoentes da Santa Sé. Isto, além de ser um crime, diminuiu a confiança em Milone, quem aceitou livremente assinar sua demissão”, diz a nota.

Seja como for, a demissão de Milone representou um golpe para a reforma nas contas do Vaticano. Um buraco ao qual se somou, duas semanas depois, a saída do superior dele, o cardeal George Pell, superministro de finanças da Santa Sé, acusado de abusos sexuais na Austrália. Milone, aliás, também buscou relacionar essa repentina saída com a sua própria demissão. “É evidente que as investigações contra ele por um caso de 40 anos atrás afloraram há um ano. E assim se lê no decreto que me foi entregue, foi no mesmo período em que a gendarmeria [polícia] começou a me investigar. Quero pensar que é uma coincidência. Mas ultimamente trabalhávamos num novo código para os contratos públicos.”

As contas, o coração das resistências ao Papa

A guerra pelas finanças do Vaticano nunca cessou. Algumas fontes consultadas por este jornal apontam diretamente a essa reforma como a causa principal das resistências que se encontrou o papa Francisco dentro da Curia. Muitas vezes transformadas em forma de acusações teológicas.

Milone que, segundo diz, não pôde falar com o Pontífice ao ser despedido, aponta nessa linha. “Temo que seja bloqueado pelo velho poder que reside aí e que se sentiu ameaçado ao compreender que podia informar ao Papa e a [secretário de Estado, Pietro] Parolin sobretudo o que via nas contas”, afirma.

De fato, ontem mesmo soube-se que o ex-diretor da Banca do Vaticano (IOR), Ettore Gotti Tedeschi, lhe acusou em um documento assinado por outros 64 pessoas —também está Bernard Fellay, líder da Fraternidad San Pío X, conhecidos como Lefebvrianos— de difundir sete heresias em sua exhortación sobre a família Amoris Laetitia.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_