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Jovens no banco dos réus por portarem vinagre e roupas pretas para um protesto

Começa nesta sexta o julgamento de 18 acusados de organização criminosa e corrupção de menores, detidos com a ajuda de um militar infiltrado

Marina Rossi

Começou nesta sexta-feira o julgamento das 18 pessoas, dentre elas três adolescentes, detidas no dia 4 de setembro do ano passado, antes de uma manifestação contra o Governo Michel Temer na cidade de São Paulo. Eles são acusados de organização criminosa e corrupção de menores. A denúncia, apresentada pelo Ministério Público de São Paulo, diz que o grupo fora formado para praticar danos ao “patrimônio público e privado e lesões corporais em policiais militares”, e que, para isso, portavam material de primeiros socorros, vinagre, máscaras, roupas pretas e capuzes. Peça-chave no caso, o capitão Willian Pina Botelho, que se apresentava como Balta Nunes e era um infiltrado do Exército no grupo de manifestantes, conforme revelado por este jornal, não foi ouvido até o momento e tampouco está entre as testemunhas da acusação. No julgamento desta sexta foram ouvidas três das cinco testemunhas de acusação antes de ser suspenso. Será retomado no dia 10 de novembro. Nenhum dos 18 réus foi ouvido.

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Advogado de um dos réus, Thiago Rocchetti diz que a presença de um infiltrado no grupo não é o que mais causa estranheza nesta história, que é "toda estranha". "A polícia pode ter um agente infiltrado, isso não é nenhum absurdo”, explica, embora a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo não tenha admitido até hoje que houve uma operação em parceria com o Exército naquele dia. Já o Exército afirmou que houve sim uma atuação em conjunto. No meio das contradições, o que causa estranheza ao advogado é o fato de o capitão Botelho ter desaparecido do processo. “O estranho neste processo é que esse infiltrado não se revelou", diz. "Até hoje não existe um relato dele, uma oitiva dele".

Rocchetti revela que todas as defesas mencionarão este fato no julgamento, que está marcado para ocorrer a partir das 14h no Fórum da Barra Funda. "As defesas não foram iguais, têm linhas de raciocínio diferentes, mas todas mencionam a presença do Balta", diz. "Ele tinha que ter se apresentado. Ao longo do inquérito ele é uma testemunha. Por que ele não se apresenta?", questiona. Por isso, o advogado Hugo Albuquerque, que defende outro réu neste caso, colocou Botelho como testemunha de seu cliente e explica que o militar terá de depor. Mas como ele foi transferido para Manaus, ainda não é possível saber como e nem onde este depoimento será dado. "Consideramos fundamental o depoimento pessoal dele, ou, na pior das hipóteses, por videoconferência com a nossa presença", explica Albuquerque.

Com base nestes argumentos, a defesa alegará nulidade processual. "A partir do momento em que no processo tem um ato que o torna nulo, o que vem depois então seria nulo também", explica Rocchetti. Ou seja, se havia um agente infiltrado que provava que o grupo havia se organizado previamente e este agente simplesmente desaparece das provas, o ato todo deveria ser anulado. "Essa é uma das minhas linhas". A outra linha da defesa é que não houve crime. "Não consigo ver um ato criminoso no fato de uma mulher ter uma folha de papel, uma caneta e uma calcinha [dentro da bolsa]. Eu já me esforcei, mas não consigo ver crime nisso", diz, se referindo às coisas que sua cliente portava no dia em que foi detida.

Na acusação também consta que um dos réus portava uma barra de ferro que seria usada para depredação de patrimônio e "para desferir golpes que lesionariam policiais". Na época em que foram detidos, os jovens afirmaram que a barra havia sido "plantada" como prova, mas que ninguém carregava aquele objeto. Outra pessoa, segundo a acusação, levava um extintor de incêndio. O advogado diz que ainda assim as possíveis provas não são suficientes. "Um extintor não é uma coisa que você carrega, o bom senso diz isso, mas mesmo assim não é crime", diz o advogado. "Me comprove que ela estava levando um extintor para fazer uma besteira. Não é razoável, mas não é um crime".

Também estão presentes na acusação, à qual EL PAÍS teve acesso, elementos como "transportar câmera fotográfica e de filmagem para registro das ações criminosas e posterior divulgação nas redes sociais" e "guardar telefones celulares de todos os integrantes". "A juíza também diz que há indícios [de que eles poderiam vir a cometer crimes] porque eles estavam vestidos de preto", diz Rocchetti. "Eu também estou. Não consigo ver nenhum crime, nenhuma conduta que possa ser descrita no Código Penal".

O advogado explica, então, que não trabalha com a possibilidade de uma condenação. Mas, questionado, faz um cálculo caso isso venha a ocorrer. "Se agente somar todos os crimes, podemos chegar numa pena de 15 anos", diz. "Mas é tão absurdo pra mim, que eu não consigo nem pensar numa pena".

Sucessão de "besteiras"

Para o advogado, este caso é fruto de uma sucessão de "besteiras" que foram ocorrendo. Naquele dia, o grupo havia combinado de se encontrar antes da manifestação para ir, todos juntos, ao ato que seria na avenida Paulista. Nem todos se conheciam. Foram para o Centro Cultural São Paulo, a poucos quilômetros de onde a manifestação aconteceria. Lá, foram abordados por diversos policiais e levados para o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic). Todos, menos o capitão Botelho, que até então ainda não havia tido sua real identidade revelada. Posteriormente, a Secretaria de Segurança Pública disse que Botelho não foi levado com os demais "por falta de indícios".

No Deic, os detidos não puderam ter contato com os próprios advogados. Rocchetti aponta esse como a primeira "besteira". "A besteira começou no momento em que eles não tiveram a chance de falar com os advogados", diz. "O delegado foi se enrolando, a coisa foi crescendo, e para justificar essa besteira, ele fez um relatório assim. O Ministério Público então para não deixar o delegado desamparado ofereceu uma denúncia. A juíza ficou sem graça de dizer 'não' de bate pronto e a coisa foi crescendo".

No dia seguinte às detenções, houve uma audiência de custódia e o grupo foi todo liberado por um juiz que considerou as prisões "ilegais". Três meses se passaram até que o Ministério Público oferecesse a denúncia, acatada agora pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. "Cresceu uma história e agora estão tentando trazer legalidade a essa história", diz o advogado. Ele afirma que, passado o julgamento e absolvidos os réus, cogita entrar com uma ação de reparação contra o Estado. "O que me preocupa nesse processo é o fato de estarem tentando mostrar que não houve nenhuma besteira".

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