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Tormenta na Catalunha ameaça calmaria do País Basco

Movimento pela separação da Espanha alimenta a preocupação em setores de uma sociedade que havia recuperado a paz

Manifestação em Bilbao convocada pela organização soberanista Gure Esku Dago em apoio ao referendo catalão.
Manifestação em Bilbao convocada pela organização soberanista Gure Esku Dago em apoio ao referendo catalão.Javier Zorrilla (EFE)
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O clima social e político finalmente havia melhorado no País Bascofim do terrorismo do ETA, recuperação econômica, baixos níveis de desemprego e renda acima da média – quando a tempestade desatada na Catalunha, que realiza em 1º de outubro um referendo pela independência da região em relação à Espanha – ameaça fazer o tempo fechar de novo. Na quarta-feira à tarde, sentado em um bar de San Sebastián, Borja Sémper, presidente do Partido Popular (PP, centro-direita) na província de Gipuzkoa e porta-voz da sua bancada no Parlamento regional, prognostica que o lehendakari (chefe do Governo basco) Iñigo Urkullu – “Um sujeito sensato, o genro perfeito, mas que tem na nuca o bafo do [partido separatista] EH Bildu e do ramo independentista do PNV [nacionalista moderado]” – se verá obrigado, em médio prazo, “a reeditar o plano Ibarretxe, que era uma reforma constitucional encoberta para terminar de esvaziar de conteúdo a presença do Estado [espanhol] em Euskadi [nome do País Basco no idioma local]”. Um dia depois, Urkullu propõe, na tribuna do Parlamento, “uma redistribuição da soberania do Estado” e tira a poeira de conceitos como “cossoberania” e “soberania compartilhada”. Trata-se apenas de um jogo de cena, ou de um rumo realmente mais radical do PNV (Partido Nacionalista Basco, na sigla em espanhol) ao calor dos acontecimentos da Catalunha?

“Nada disso, rapaz!”, responde, em uníssono, uma turma de amigos que se definem como “nacionalistas sem carteirinha”, reunida no bar La Viña, em Bilbao. “Quando acontecer isso do referendo da Catalunha ficaremos como estamos, pactuando aqui com uns [o Partido Socialista de Euskadi], em Madri com outros [o PP do primeiro-ministro Mariano Rajoy], e desfrutando da tranquilidade sem o ETA [grupo separatista armado, que está em processo de dissolução]. Já era hora de pararmos de aparecer nos telejornais!”, afirma um deles. Roberto Uriarte, professor de Direito Constitucional na Universidade do País Basco e ex-secretário geral do partido esquerdista Podemos em Euskadi, acha, no entanto, que “por pura osmose os processos de mobilização na Catalunha podem gerar processos de mobilização também aqui”. E acrescenta: “O que se pode produzir por contágio é, por um lado, uma tendência a aprofundar a ação do Gure Esku Dago [“está em nossas mãos”, na língua basca – uma plataforma em favor do direito de decidir, no estilo da Assembleia Nacional Catalã] e, por outro, que ficarão mais evidentes as contradições internas do PNV entre a postura mais institucional e a mais independentista”. Já no Euskal Herri Bildu (EH Bildu), a organização do dirigente separatista Arnaldo Otegi, a situação catalã é vista como uma oportunidade de recuperar certo protagonismo político depois do desaparecimento do ETA. A parlamentar navarra Bakartxo Ruiz afirma que “efetivamente” a situação da Catalunha “terá incidência na ativação ou reativação de um processo soberanista no conjunto do Euskal Herria [as áreas historicamente bascas, que abrangem as regiões autônomas espanholas do País Basco e Navarra, mais parte do território francês]”. Segundo a porta-voz de EH Bildu, “está ficando claro que o estado das autonomias desenhado em 1978 [data da atual Constituição espanhola] já não vale mais e que isso, como prova o que está acontecendo na Catalunha, é um incentivo para que uma parte dos cidadãos que até agora via a questão com mais frieza e assumia o marco atual esteja questionando o Estado em que vivemos”.

O sociólogo Joseba Arregi Aramburu participou da cúpula do PNV como secretário de política linguística, conselheiro de Cultura e porta-voz do Governo basco, até que em 2006 decidiu se afastar. Diz que muitos bascos enxergam o que está acontecendo na Catalunha “com expectativa e nervosismo”, porque “a sociedade basca já está um pouco cansada destes debates, destes vaivéns; aqui havia sido iniciado um caminho de esquecer sua própria história e de iniciar uma caminhada – com esquecimento, mas tranquila – com vistas ao futuro”. Segundo Arregi, há um fator que marca uma diferença substancial entre o respaldo social à iniciativa do Governo catalão e a repercussão de um eventual rumo parecido no País Basco. “A existência do ETA”, explica, “provocou uma resistência civil. Não se deve esquecer que as pessoas que lutaram contra o terrorismo tinham muito claro o que ETA pretendia: sua legitimação última estava num nacionalismo radical. E isso levava a ter muito claro que era preciso defender o Estado de direito e a cultura constitucional”. O ex-conselheiro basco cita como exemplo dessa luta contra os totalitarismos a recém-falecida María Teresa Castell e seu marido, José Ramón Recalde, que, junto com Ignacio Latierro fizeram da livraria Lagun a sua trincheira de luta, primeiro contra Franco, e depois contra o ETA. “Tudo isso fez”, conclui, “com que no País Basco haja um núcleo muito claro de resistência, que provavelmente não se formou tão claramente na Catalunha até que talvez fosse um pouco tarde”.

Um alto funcionário do PNV admite, como também suspeita Arregi, que a virulenta disputa entre Barcelona e Madri deixa Urkullu muito preocupado. “Estão atrapalhando o nosso tédio tão arduamente conquistado”, brinca ele. “Nossa melhor cartada é justamente o perfil do lehendakari, um político em quem você pode ou não votar, mas que até os militantes de outros partidos tratam com respeito e confiança. Todo mundo em Euskadi sabe que Urkullu jamais agiria como [o presidente catalão, Carles] Puigdemont”.

JOGOS PERIGOSOS E PERGUNTAS INQUIETANTES

Diz Agus Hernan, coordenador do Fórum Social Permanente, uma iniciativa cidadã envolvida no desarmamento do ETA, que a situação da Catalunha tirou o fim do terrorismo basco da pauta política e midiática, “e isso tem duas consequências”. Por um lado, argumenta, “permite trabalhar de forma mais sossegada o desarmamento, a convivência, a situação das vítimas, mas ao mesmo tempo não estar na pauta gera nos políticos menos necessidade de encarar essas questões tão importantes”. Joseba Arregi se diz perplexo em ver Otegi nas manifestações de Barcelona: “Acho que os separatistas catalães prestam um péssimo serviço a si mesmos ficando ao seu lado”. O sociólogo basco cita o historiador italiano Gugilielmo Ferrero para advertir: “Quando se acaba com o Estado de direito, a única coisa que surge é a violência. Vejo muitos jogos perigosos nesse sentido: Otegi na Catalunha apoiando os separatistas, a CUP [partido catalão de esquerda e separatista], os antissistemas... Parece que as histórias se repetem porque são esquecidas”. Sobre o papel da esquerda, chama a atenção de Arregi um argumento que volta a aparecer ultimamente: “Dizem: claro que o Estado tem a força do Estado de direito, mas não esqueçamos que ao longo da história todos os novos Estados foram construídos sobre a força do fato. Isso é verdade, mas a pergunta é: faz sentido, uma vez que se constituiu um Estado de direito, dar um passo atrás para voltar outra vez a uma situação de fato? E outra pergunta: pode-se fazer isso realmente sem algum tipo de violência? Essas são as perguntas que, olhando um pouco a história, deveriam ser feitas, em lugar de argumentações bastante pueris como sobre a possibilidade de proibir a instalação de urnas...”

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