_
_
_
_
_

“Tinha que rezar se visse um garoto bonito”: as feridas deixadas pelas ‘curas gays’ no mundo

Décadas depois de que a homossexualidade deixou de ser considerada uma doença, ainda há clínicas no mundo que oferecem ‘curas’ desta orientação sexual

Protesto pela igualdade sexual nos EUA em 2016
Protesto pela igualdade sexual nos EUA em 2016David McNew (Getty Images)

Dez Pai Nossos e dez Ave Marias. E 75 miligramas dos antidepressivos Ludiomil e outros 20 de Dogmatil diariamente. Àngel Llorent se submeteu durante 10 anos a este tratamento para deixar de ser gay. “Tinha que rezar se visse um garoto bonito na rua”, explicou ao EL PAÍS em 2010 (data da publicação de esta reportagem na edição espanhola do jornal) este catalão que queria ser heterossexual porque acreditava que estava doente. Deixou seu trabalho e seus amigos. Mudou de vida. Por um tempo foi um ex-gay. Não funcionou. Tentou suicidar-se.

Mais informações
Masturbação coletiva em vestiário expõe a intolerância do ‘futebol para macho’
Mundo ergue cerco às pseudoterapias por ‘cura gay’
Campos de concentração para gays na Chechênia: o novo velho pesadelo da Federação Russa
“Biichaaa!”, o grito homofóbico da torcida que o time do Rio Claro quer banir

A cura gay, que lhe aplicaram há uma década, também consistia em fazer sexo com mulheres e não ver pornografia. Àngel a abandonou e agora é o que se chama de um ex-ex-gay. Trabalha contra as terapias corretivas que curam a homossexualidade. “Busquei um psiquiatra particular da comunidade evangélica de Barcelona porque eu não me aceitava. Nas consultas tentava reafirmar minha masculinidade, mas ao não obter efeito começou a me medicar para abaixar minha libido. Era uma castração química”, conta Àngel, membro da Associação Cristã de Gays e Lésbicas da Catalunha.

A denúncia de que a Policlínica Tibidabo, em Barcelona, oferecia comprimidos e tratamentos a seus pacientes para deixarem de ser gays reabriu a polêmica sobre uma opção descartada em 1973, quando os cientistas rejeitaram considerar essa inclinação como transtorno psicológico. “Evidentemente, não se pode curar a homossexualidade. Essas terapias representam mala praxis e estão desautorizadas. Causam transtornos depressivos, condutas autodestrutivas, ansiedade, e podem conduzir ao suicídio”, afirma a psicóloga Silvia Morell.

Apesar de a Organização Mundial da Saúde ter excluído a homossexualidade das doenças em 1990, o movimento ex-gay em todo o mundo oferece a cura por considerar que é algo tratável, que torna “infeliz” quem a sofre.

Em 2009, a Associação Americana de Psicologia condenou essas terapias que cobram até 80 euros (300 reais) por sessão, por serem ineficazes. Não existe nenhuma evidência científica que demonstre que seja possível mudar a orientação sexual. O Ministério da Saúde espanhol não tem registros oficiais sobre as clínicas que praticam o método. Além disso, muitas são aplicadas em centros religiosos privados.

Como a Tibidabo, que foi investigada pelo Conselho de Saúde catalão, existeram outras clínicas que oferecem o caminho para a heterossexualidade na Espanha, segundo Miguel González, presidente do Coletivo de Lésbicas, Gays, Transsexuais e Bissexuais de Madri em 2010: “Sabemos de muitos casos de pessoas que se submetem a esses tratamentos e depois se arrependem, mas não denunciam. É um erro tratar algo que não é uma doença psiquiátrica, deveria ser um delito. Foi demonstrado que nada disso funciona”.

Marc Orozko é um caso de terapia sem religião. Um tratamento similar ao do cachorro de Pavlov, que busca associar estímulos positivos ao heterossexual e negativos ao gay. Durante um ano ele se tratou na clínica Dexeus, em Barcelona. Tinha 20 anos e seu terapeuta lhe recomendava masturbar-se pensando em mulheres. Também o obrigava a colocar uma borracha em seu pulso e puxá-la toda vez que pensasse em um homem, para assim relacionar a figura masculina com a dor. Isto é conhecido como terapia de aversão comportamental. “Tinha que castigar-me ou premiar-me”, recorda Marc, que recebeu tratamento durante um ano no final dos anos 90 e afirma que por causa disso teve efeitos secundários, como obsessões, inseguranças e conflitos para relacionar-se.

Na Espanha não há grupos de ex-gays estabelecidos oficialmente. Nos EUA existia o Exodus International, baseado na religião e na abstinência para “diminuir as tentações homossexuais, corrigindo estilos distorcidos de relacionar-se com o sexo oposto”, segundo seu site. A organização defende que “a reorientação da atração pelo mesmo sexo não é necessária, mas é possível”. Eles fecharam em 2013.

Há unidades semelhantes em muitos países. Malena Mattos aderiu ao programa, deixou de ser lésbica e agora oferece “terapias corretivas” no Peru. Define seu trabalho como “teoterapias”, baseadas na Bíblia. “A homossexualidade não é ruim. Há pessoas que vivem bem, embora sempre terão um problema. Existe uma alternativa para quem não é feliz assim. A homossexualidade não é uma opção de acordo com as Escrituras. Deus fez homens e mulheres, não fez um terceiro sexo”.

José L. se submeteu há três anos a um tratamento laico em uma clínica de Madri. Comparecia na terapia uma vez por semana e ia para retiros com outros ex-gays. “Foi terrível. Lavaram o meu cérebro. Eu acreditava que estava doente e sentia culpa”, conta José, que pede para se manter no anonimato. Este advogado de 35 anos seguiu as teorias de Aquilino Polaino, o especialista da Universidade Complutense que em 2005 foi convidado pelo PP para o Senado para explicar os danos que os casais gays podem causar aos filhos. Polaino, a quem este jornal tentou contatar, mas se encontra em viagem pelo México, defende as “terapias corretivas” e considera que a homossexualidade surge entre filhos de famílias disfuncionais. A psicóloga Patricia M. Peroni, que não concordou em dar uma entrevista, e Jokin De Irala, da Universidade de Navarra, escreveram livros e dão conferências nas quais garantem que a homossexualidade pode ser revertida.

As três pessoas citadas que estiveram em terapia levaram anos para ver que não podiam deixar de ser gays. Àngel Llorent conclui: "Com o tempo tudo ia se agravando. Muita gente acaba suicidando-se. Me diziam que estava doente e que era uma disfunção psicológica que podia ser reparada. Agora vejo que não é verdade e que não faço nada de mau”.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_