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“Caso Queermuseu mostra que são tempos de intolerância. Da direita, mas também da esquerda”

Fechamento prematuro da mostra só foi possível por um contexto de pouco apreço à liberdade de expressão, diz especialista

Rodrigo Cássio Oliveira, doutor em Estética e Filosofia da Arte pela UFMG.
Rodrigo Cássio Oliveira, doutor em Estética e Filosofia da Arte pela UFMG.Acervo pessoal

No último domingo, a exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, que estava em cartaz há quase um mês no Santander Cultural, em Porto Alegre, foi cancelada pelo banco após uma série de protestos nas redes sociais. Na visão dos manifestantes, a mostra fazia apologia à pedofilia e zoofilia além de ser ofensiva à moral cristã. A campanha pedindo o fechamento da mostra foi articulada principalmente pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e grupos religiosos.

A polêmica em torno da exposição, que apresentava trabalhos que discutiam diversidade de gêneros e de sexualidade, acabou acendendo o debate sobre os limites das expressões artísticas e a censura. Isso, no entanto, não parece ter pego de surpresa Cássio Oliveira, doutor em Estética e Filosofia da Arte pela UFMG. Para ele, o fechamento prematuro da mostra só foi praticado porque hoje nós temos um contexto de pouco apreço à liberdade de expressão, que ameaça o poder transgressor da arte.

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Pergunta. Existe limite para a liberdade de expressão na arte?

Resposta. Em princípio, não existiria um limite. A arte deve e pode falar sobre tudo que ela quiser. Isso não significa que a liberdade de alguns artistas não seja limitada por alguns aspectos pontuais. Por exemplo, se você tem uma obra de arte que, para ser feita, vai causar algum tipo de transtorno em alguém ou algum ser, você precisa ponderar se vale a pena ou não. Vale a pena fazer uma obra de arte que fará alguém sofrer? Imagina uma instalação que vai colocar uma pessoa numa caixa duas semanas, onde ficará isolada e vai sentir angústia, porque quero representar angústia. Acho que nem tudo é possível e nem tudo pode ser feito. Você não pode matar alguém e falar que é uma obra de arte. Esses limites são bem pontuais e não foi o caso de Porto Alegre em que uma exposição inteira foi cancelada.

P. Uma das principais críticas dos grupos que pediram o fim da mostra foi que ela fazia apologia à pedofilia e a zoofilia. O que fez, inclusive, um promotor ir ao local verificar a acusação, o que não foi constatado.

A classificação indicativa é um instrumento para resolver questões de desacordo à liberdade de expressão. Isso pouco se falou, não houve uma mobilização sobre esse tema.

R. A gente tem como característica da arte contemporânea um distanciamento em relação à sensibilidade de um grande público, da estética do grande público. Não tem a ver apenas com as obras que chocam, que tem intenção de afrontar valores como essas que foram exibidas na mostra de Porto Alegre. É uma característica que, desde a arte moderna no começo do século XX, está presente. Penso que nesse episódio no Queermuseu o argumento de apologia à pedofilia e zoofilia foi usado em uma má leitura das obras. Ele se aproveita justamente do fato que a sensibilidade do grande público não consegue perceber que não se trata disso. Essa foi uma leitura que foi colocada por grupos como o MBL e logo se espalhou. Mas isso não confere com a obras. Quando você vê algumas das que causaram polêmica, como a da Adriana Varejão, não se trata de zoofilia ou pedofilia. Até mesmo um promotor foi ao local e disse que não era. Do ponto de vista legal, não se trata disso. Do ponto de vista estético, da crítica de arte tampouco. Existe uma mistificação sobre o que uma obra de arte pode dizer. E o MBL e os grupos que fizeram pressão para que a mostra fosse encerrada se aproveitaram disso. Divulgaram essa leitura como se fosse óbvia quando ela não é. Se a gente voltar na história da arte, vamos ver muitas obras que tratam de sexo e erotismo. Muito já se falou, por exemplo, da obra de Vladimir Nabokov, Lolita. O livro não é uma apologia à pedofilia, é um romance. Essa passagem do tema para ideia de apologia não faz sentido. Foi uma estratégia política de quem estava interessado em fechar a mostra e contrariar quem se identifica com a mostra. Acho que houve uma abordagem política que sobrepõe o valor estético. A interpretação pela via da política é: essa obra é degenerada, ela representa afronta aos valores ocidentais, logo ela é de esquerda. Aí a direita combate isso e tudo tende a se reduzir ao fator político.

P. Na sua opinião, o que houve foi censura ou boicote como alegam os movimentos contrários à exposição?

R. O resultado de toda essa polêmica e da decisão final foi censura. Não foi simplesmente um boicote. Ainda que a censura não tenha sido assumida como objetivo pelos que disseram que a mostra não deveria existir, isso já está implícito no simples fato de haver um salto entre afirmar que as obras são ruins ou que são criminosas e a ideia que você não deve exibir isso. O argumento possível é: essas obras são criminosas então não devem ser exibidas. No momento que esse argumento é desconstruído, porque é falacioso, a única coisa que resta é: essas obras me desagradam porque são provocativas, porque elas ferem valores meus, logo não deve ser exibida. Esse raciocínio, para mim, é um pensamento de censor. E ele só foi praticado porque nós temos um contexto de pouco apreço à liberdade de expressão. Particularmente não acho que o artista tenha a obrigação de falar com o grande público. Acho que ele pode esperar que o grande público procure decifrar as sutilezas da obra sem que ele tenha que render às formas expressivas muito comuns. Não acho que seja uma obrigação do artista fazer concessão ao público para que a obra seja mais acessível. Acho, no entanto, que movimentos organizados a partir do liberalismo deveriam ter a obrigação de atender à liberdade de expressão.

P. Um dos argumentos para pedir o fechamento da mostra foi que ela era aberta ao público infantil. Faltou classificação etária na mostra?

R. Sim, toda essa discussão poderia ser resolvida levantando a pauta da classificação indicativa. Não seria o caso de rever como as obras estão expostas se existe uma insatisfação importante do público? A classificação indicativa é um instrumento para resolver questões de desacordo à liberdade de expressão. Isso pouco se falou, não houve uma mobilização sobre esse tema. O que tivemos foi uma mobilização forte para que cancelasse a mostra. E que comemorou esse desfecho. Essas pessoas disseram: foi meu direito protestar e o banco fez bem em atender isso. Era possível defender a liberdade das obras serem expostas e ao mesmo tempo criar uma solução para essas pessoas que se sentem ofendidas quando vão apreciar essas obras. Por que não se falou em classificação indicativa? Por que essa mostra foi cancelada? Para mim é um sintoma de falta de liberdade de expressão e de um ambiente propício a censura.

Se você patrocina cultura, estimulando a cultura, você precisaria prezar  pela liberdade de expressão.

P. Considera que os espaços culturais de empresas comprometidos com imagem pública, como o caso do banco Santander, acabam entrando em um conflito de interesses ao apresentar uma exposição polêmica? Talvez não seja o melhor local para fomentar a arte?

R. Entendo que a instituição acaba ficando dividida entre atender aquilo que as pessoas que estão protestando e o trabalho da curadoria da mostra. A decisão do banco certamente foi baseada em manter sua imagem, em não associá-la a coisas como zoofilia e pedofilia, que acabou se consolidando como a imagem da mostra a partir da mobilização contrária. É uma posição delicada, mas vemos uma contradição. Se você patrocina cultura, estimulando a cultura, você precisaria prezar pelo pela liberdade de expressão. Realmente é um lugar complicado que o banco assume entendendo que ele tem que responder aos seus clientes também. Mas acho que a atitude foi incorreta, o banco tomou a decisão errada ao cancelar, ele deveria ter sido quem encaminha o debate sobre a classificação indicativa.

P. A polêmica é só mais um reflexo do momento de intolerância que vivemos atualmente?

R. Ela é reflexo de um acirramento de ânimos que a gente tem visto no país. A situação política do país é essa e tem se refletido desde 2014 e vai se revelar outra vez nas eleições do ano que vem. Há uma polaridade evidente e o MBL, como movimento que surgiu desse processo mais recente, exibe bem essas características de ter uma postura agressiva contra aquilo que eles não concordam. Vivemos tempos de intolerância. E não é apenas uma coisa da direita contra a esquerda. A esquerda também é intolerante hoje. Acho que a mesma coisa que aconteceu nesse caso de Porto Alegre, acontece com muita frequência na mobilização que movimentos da esquerda fazem contra aquilo que eles consideram equivocado. Por exemplo, muitos movimentos de minoria são organizados e movidos pelo ímpeto do politicamente correto e atuam de forma contrária a arte. Às vezes querem impedir a divulgação de filmes com conteúdo machista, certas obras não devem ser exibidas porque estão ofendendo movimento de minorias X ou Y. Isso acontece muito hoje. Esse movimento do politicamente correto não é tão novo e é defendido tanto para a direita como para a esquerda.

Muitos movimentos de minoria são organizados e movidos pelo ímpeto do politicamente correto e atuam de forma contrário a arte

P. Na sua opinião, obras que mostram cenas eróticas e que tocam temas de religião continuarão sempre como tabu?

R. A arte que provoca, que tem a intenção de ser chocante e ser transgressora, sempre vai estar enfrentando algum tipo de condição, de estabilização de valores que ela quer confrontar. É natural que haja polêmica, o que não é natural é que a gente não valorize o papel da expressão artística. No filme Sem essa, Aranha [1970], Helena Ignez acaricia com o pé um crucifixo . É uma cena que é espantosa para os cristãos provavelmente e feita ali no auge da ditadura militar. Evidentemente havia uma provocação e a arte busca isso. Algumas vezes, não significa que a arte tenha que ser sempre transgressora. Isso não faz que ela seja boa ou que seja ruim. Se ela é transgressora é que ela está enfrentando algo que pode render polêmica. Nesse tipo de obra, chocar e conseguir reações é o esperado. As pessoas tem direito de provocar, de trabalhar com símbolos como a arte faz, você trabalhar com o imaginário, isso não é motivo de censura.

P. A decisão do Santander encerrar a mostra abre precedente para novos protestos contra a arte?

R. Acho que ela faz parte de uma série de acontecimentos relativos a falta de apreço à liberdade de expressão dos últimos tempos. Como foi o caso do festival audiovisual de Pernambuco, o Cine PE, em que cineastas de esquerda tiraram seus filmes da mostra porque não queriam que eles fossem exibidos com filmes de direita, ligados a perspectivas liberais e conservadoras. Eles têm todo o direito de não querer exibir seus filmes, mas veja como isso é contraditório. Você faz um filme e não vai exibi-lo por uma questão ideológica, que você não quer se misturar com alguém que tem uma ideologia diferente. Isso também é sintoma de uma trajetória recente e acho que a gente vai ter mais. Se continuarmos a ter uma realidade que divide as pessoas e cria condições políticas como a que estamos vivendo vamos, cada vez mais, ter casos assim. Acho que acompanha o humor da sociedade.

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