_
_
_
_
_
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Mordendo o próprio rabo

Ao contrário do que advogam os entusiastas do autoritarismo, o período militar não conheceu estabilidade política

Registro histórico da época da ditadura militar no Brasil.
Registro histórico da época da ditadura militar no Brasil.AP
Mais informações
Leia outros artigos de Luiz Ruffato
Mexeu com um, mexeu com todos
Falta de educação
A nossa guerra particular

O legado mais trágico da institucionalização da corrupção no Estado brasileiro – em todos os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), em todos os níveis (federal, estadual e municipal) e abrangendo todas as cores ideológicas, sem exceção – é a descrença da população em geral no regime democrático. Assistimos, impotentes, a defesa de governos autoritários e o fortalecimento do discurso da intolerância. E, apáticos, vemos, um a um, desabarem os pilares que sustentavam nossos sonhos de justiça, harmonia e liberdade.

O cantor e compositor sertanejo Zezé Di Camargo, que junto com seu irmão Luciano, com quem faz dupla, detém uma das maiores fortunas do meio musical brasileiro, calculada em R$ 500 milhões, declarou ao canal de Youtube da jornalista Leda Nagle que o Brasil nunca teve uma ditadura. Segundo ele, nós vivíamos um “militarismo vigiado”. E, após relativizar as torturas e as mortes sob o regime dos generais – “não chegou a ser tão sangrento assim” –, ele defendeu a volta do “militarismo” para “reorganizar a coisa” e “entregar de novo” o poder aos civis.

O deputado federal Jair Bolsonaro, ex-capitão do Exército e pré-candidato à Presidência da República, encarnando esse ideário de “valores” da ditadura, vem contabilizando um impressionante crescimento de intenção de voto. Conforme pesquisa do instituto DataPoder360, realizada nos dias 9 e 10 de julho, Bolsonaro já conta com 21% das intenções de voto, contra 26% do pré-candidato petista, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A nostalgia por um regime de forças, algo impensável há algum tempo, vem se tornando raciocínio bastante comum nos mais diversos meios sociais.

Bolsonaro ocupou recentemente o microfone da Câmara dos Deputados para criticar o seriado da TV Globo, “Os dias eram assim”, cujo enredo passa-se nos anos 1970, chamando-o de “farsa” e “mentira”. Ele só faltou pedir a suspensão do programa, em nome da “verdade” e da “pátria”, passo, no entanto, dado pelo Movimento Brasil Livre (MBL), seção do Rio Grande do Sul, que conseguiu fechar a mostra “Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira”, que estava em exposição no Santander Cultural, em Porto Alegre, em nome da moral e dos bons costumes.

A coordenadora do MBL no Estado, Paula Cassol, condenou a exposição por, segundo ela, fazer apologia à pedofilia, zoofilia e pornografia. A mostra, que propunha uma reflexão sobre gênero e diversidade sexual, reunia 273 obras de 90 artistas brasileiros, entre os quais Ligia Clark, Candido Portinari, Alfredo Volpi e Adriana Varejão. Embora não tenha visitado a exposição, Paula Cassol afirmou que “isso não é arte”, e liderou a pressão contra o banco, que acabou cancelando a mostra. Também a Arquidiocese de Porto Alegre se manifestou, em nota oficial, denunciando a exposição por utilizar “de forma desrespeitosa símbolos, elementos e imagens, caricaturando a fé católica e a concepção de moral que enleva o corpo humano e a sexualidade como dom de Deus”...

No dia 19 de março de 1964, dia de São José, padroeiro das famílias, um grupo estimado entre 300 e 500 mil pessoas, lideradas pela Igreja Católica, realizou em São Paulo a chamada Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Replicadas em várias partes do Brasil, essas marchas, que contavam com apoio de diversas organizações civis e classistas, e que visavam combater “o ateísmo comunista”, restaurar a ordem e restabelecer a moral, encorajaram o golpe militar que nos sentenciou a 21 anos de obscurantismo.

Ao contrário do que advogam os entusiastas do autoritarismo, o período militar não conheceu estabilidade política. A cada sucessão brigavam entre si os vários setores das Forças Armadas para fazer prevalecer seus interesses: golpe de 1969 que guindou o general Garrastazu Médici ao poder; rebelião de militares linha dura contra o general Ernesto Geisel; pacote de Abril de 1977 que sufocou a oposição; rebelião de militares linha dura contra o general João Figueiredo. Também não foi um tempo de estabilidade econômica: a inflação média era de 20% ao ano (contra 7,5% ao ano no período democrático, não contando o governo de transição de José Sarney), e ultrapassava os 200% ao ano quando devolveram o poder aos civis. Além disso, a corrupção grassava nas mais de 500 empresas estatais existentes, que incluíam siderúrgicas, bancos, rádios, refinarias, etc.

Durante o período militar, censores profissionais definiam o que era ou não era arte, o que podia ou não podia ser publicado, visto ou ouvido. Durante o período militar, qualquer um podia parar na cadeia e ser torturado ou até morto por manifestar opinião divergente. Durante o período militar estavam proibidas manifestações de rua. Os militares destruíram os sistemas de educação e saúde e ampliaram o fosso entre ricos e pobres. Mas, principalmente, os militares forjaram a geração que manda hoje no país, contra a qual se insurgem aqueles que defendem... a volta da ditadura militar...

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_