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Coluna
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A banalidade do mal e o esquecimento do bem

O Brasil também continua de pé graças à maioria das pessoas, que sofre sem vender sua consciência

Juan Arias
Protesto contra ativistas conservadores no dia 19 de agosto em Boston
Protesto contra ativistas conservadores no dia 19 de agosto em BostonSpencer Platt (AFP)
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Acostumados todo dia a receber notícias de corruptos e canalhas sem escrúpulos, de violências e direitos pisoteados, poderíamos cair na tentação de acreditar que no Brasil não há pessoas boas e honradas. Elas existem, e são a imensa maioria. São elas que mantêm o país de pé, que o fazem funcionar. Graças a elas, conseguimos viver e até manter um fio de esperança.

Enquanto crescia, aqui e no mundo, o monstro da violência, do terrorismo e dos novos nazismos, dois personagens históricos, dois pensadores, ambos mulheres, ambas perseguidas por sua condição de judias, a alemã Hannah Arendt e a húngara Agnes Heller – esta última, inclusive, sobrevivente de um campo de concentração – se transformaram em atualidade. Arendt, após ter peregrinado fugindo da perseguição, conhecedora privilegiada dos horrores do Holocausto e seus verdugos, cunhou o conceito de “banalidade do mal”. Trata-se do perigo, como ocorreu durante o nazismo, de que as pessoas comuns acabem vendo o mal como algo normal, como algo que realizamos por dever ou por simples seguimento de uma ideologia fanática. É a obediência às ordens do tirano, sem medir as suas consequências. O mecanismo que transforma em normal e burocrático os massacres e holocaustos.

Um perigo que hoje se torna tragicamente atual, com o ressurgimento de velhas e novas ideologias de ódio e discriminação dos diferentes. Mas além desse perigo real, que a extrema-direita e as ideologias de várias tendências ressuscitam, existe outro, oposto. À banalidade do mal se opõe, hoje, o chamado “esquecimento do bem”, como se a humanidade estivesse possuída definitivamente pelo mal, sem espaços para a bondade. É o que a pensadora húngara Agnes Heller acaba de recordar a este jornal numa entrevista, em sua casa de Budapeste, ao jornalista Guillermo Altares, quando afirma que hoje, com seus quase 90 anos e depois de ter vivido guerras e exílios, de seu pai ter morrido em Auschwitz e de ela ter se salvado junto com sua mãe, a única fé que lhe resta é que, até no meio do pior inferno, continuam existindo “pessoas boas, capazes de ajudar os demais a se salvarem.”

O esquecimento e o silêncio da existência do bem podem ser, de fato, tão perigosos quanto a banalização do mal, pois acabam com as chances de esperança. Outro judeu, Sigmund Freud, pai da psicanálise, já tinha recordado, em meio aos horrores do nazismo, que o impulso da vida supera o da morte, que é como dizer que o bem acaba vencendo o mal. Do contrário, dizia Freud, o mundo já não existiria.

O Brasil também continua de pé, apesar de todos os tropeços e de todos os seus demônios, graças à grande maioria das pessoas que são honradas e trabalhadoras, que se sacrificam e sofrem sem vender sua consciência. É esse exército que, mesmo furioso com os corruptos e consciente da existência do mal, continua em seu caminho, sem se vender ao deus do derrotismo, buscando seus espaços de felicidade – sua e dos demais. Sem essas pessoas boas e normais, nosso cotidiano seria um inferno. Sem esses milhões de trabalhadores que não se vendem e geralmente sofrem injustiças e penalidades todo dia, nosso cotidiano pararia. Toda vez que acendemos uma luz, abrimos a torneira, pegamos um ônibus, compramos num mercado e encontramos nossas ruas limpas, deveríamos pensar que, por trás disso tudo, existe alguém que está trabalhando de forma honrada e silenciosa para que isso seja possível.

Todos nós já cruzamos algum dia com uma dessas pessoas generosas, capazes de ajudar sem esperar recompensa. É das pessoas boas que fala a filósofa húngara após ter vivido os horrores do mundo. Neste momento, eu não poderia deixar de lembrar que, se hoje estou escrevendo estas linhas, é porque, quando ainda era criança, uma família pagou meus estudos, o que meus pais, professores de escola, não teriam podido fazer. Uma família que não conheci porque preferiu o anonimato. São essas famílias, e não os banalizadores do mal, as verdadeiras construtoras e donas do mundo.

Que não se enganem os corruptos e violentos, pois essas pessoas boas, se quiserem, também podem se rebelar. E nada mais perigoso para os canalhas que a ira dos inocentes. O que seria, por exemplo, das pessoas abastadas das cidades brasileiras se, por exemplo, esses milhões de favelados, deixados à própria sorte, vítimas da banalização da violência, decidissem baixar em massa e incendiá-las? Não é que não haja pessoas de bem. Às vezes, frente ao mal e à injustiça que as rodeia, ao descaramento do mal, dá até vontade de pensar que são boas demais.

 

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