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As FARC prometem fidelidade ao ideário revolucionário em seu novo projeto político

A organização dá início ao congresso para criar o seu próprio partido na Colômbia depois de deixar as armas

Principal líder das FARC Rodrigo Londoño, codinome Timochenko, durante Congresso.
Principal líder das FARC Rodrigo Londoño, codinome Timochenko, durante Congresso.EFE

As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) abriram neste domingo, em um centro de convenções de Bogotá, o congresso no qual se constituirão como partido político. Depois demais de meio século em guerra com o Estado, os mais de 7.000 ex-combatentes da organização enfrentam uma reincorporação à sociedade marcada por um postulado central. Da violência transitam agora para a política. Esta é a diferença abissal em relação ao passado, que assentará as bases do futuro partido, cujo nome ainda não foi definido. Tudo o mais, começando pelo programa, continuará vinculado ao ideário revolucionário que Rodrigo Londoño, o Timochenko, líder máximo da guerrilha, defendeu na inauguração do conclave.

“Nos transformaremos a partir deste evento em uma nova organização, exclusivamente política, que exercerá sua atividade por meios legais”, proclamou diante de cerca de 1.500 pessoas, que vão debater até sexta-feira, dia 1 de setembro, os estatutos e princípios desta nova força. As FARC encerraram a entrega de armas em 15 de agosto passado e seus membros deixaram de ser formalmente guerrilheiros. “Isso não significa que renunciamos de alguma maneira a nossos fundamentos ideológicos ou projeto de sociedade”, continuou Timochenko, que apelou ao legado bolivariano. “Continuaremos sendo tão revolucionários quanto os marquetalianos”, prometeu em referência à chamada República de Marquetália, o território em que em 1974 se deu o início do conflito armado. “Persistiremos nas bandeiras bolivarianas e nas tradições libertárias de nosso povo, para lutar pelo poder e levar a Colômbia ao exercício pleno de sua soberania nacional, e para tornar vigente a soberania popular”.

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A partir de hoje, porém, a organização terá de se haver com seu passado, cheio de crimes, e dirigir-se de outra forma aos colombianos. Timochenko assume de alguma maneira que as FARC estão mudando de rumo, pelo menos em sua relação com a sociedade. “Temos de tomar consciência real da amplitude com que devemos nos dirigir à nação, sem dogmas nem sectarismos, alheios a toda ostentação ideológica, com propostas claras e simples.” “Isso”, prosseguiu, “deverá estar manifestado em nosso nome, em nossos símbolos, em nossa atitude, em nossa forma de tratar as pessoas, em nossas plataformas e programas”.

Este congresso representa neste contexto um passo decisivo para o novo mapa de partidos da Colômbia, que no próximo ano realiza eleições presidenciais e políticas, e um marco no processo de paz alcançado com o Governo de Juan Manuel Santos. As FARC na verdade ainda têm tudo, ou quase, por decidir. E, segundo seus dirigentes, o objetivo deverá ser ganhar simpatizantes em uma sociedade em que tiveram historicamente um alto grau de impopularidade. “Não precisamos nos convencer de que somos revolucionários, mas somar mais e mais gente ao processo pelas grandes transformações do país”, disse Timochenko.

Superar o passado

“Nada é fácil no mundo político, muito menos a atividade revolucionária. O regime e o sistema não foram feitos para nós, mas estamos imersos neles e dispostos a mudá-los”, afirmou o líder da organização, que advertiu aos seus que já não cabe olhar para o passado. “Urge compreender e assumir a dimensão política estratégica do passo que estamos dando. Não se trata de lamentar voltando os olhos para o passado, mas de extrair dele a experiência acumulada com vistas à construção de um futuro melhor para nosso povo. A paz terá de ser uma realidade certa na Colômbia, uma tarefa bonita nos espera”, afirmou.

O número dois da organização, Iván Márquez, conclamou a que se chegue ao coração da população e a consolidar-se como o “novo poder urbano”. Reconheceu que não será fácil, segundo ele, devido ao estigma a que foram submetidos por décadas. Relembrou as vezes em que publicamente pediram perdão às vítimas e assegurou que continuarão fazendo isso. “A reconciliação é possível ainda em meio à polarização.” E afirmou que trabalharão por um Governo de transição, resultado de uma grande coalizão. “Abriremos diálogos com todos os setores. Acreditamos que é possível promover uma grande convergência com outros setores para 2018”, afirmou diante de centenas de antigos combatentes que, como Luz Ledis Lópes, de 36 anos, já não terão de esconder sua participação nas FARC. Ela viajou de Córdoba para Bogotá para participar do Congresso que definirá o futuro político do movimento. “Isto é história. É o momento da mudança. Já não há armas, somos legítimos. Não somos mais os inimigos.” Durante muitos anos fez parte da milícia na região, agora espera que a política lhe dê a possibilidade de fazê-lo sem esconder-se. “A segurança é o que mais nos preocupa. As coisas continuam sendo muito complicadas para nós nas regiões”, afirma.

Enquanto isso, o medo aparece nas conversas entre os ex-guerrilheiros e líderes sociais. Recordam o extermínio sofrido pela União Patriótica (UP), o movimento político que surgiu depois de um acordo de paz no fim dos anos oitenta. “Agora somos um alvo visível. Se não quiserem que cheguemos ao poder, vão impedir da única forma que existe, com violência”, ouvia-se entre um grupo de delegados da FARC no início do evento.

O hino em público

Pelo menos 1.500 representantes de todo o país se reúnem em Bogotá. Neste domingo, pela primeira vez cantaram publicamente o hino das FARC na capital do país depois de entoar, de pé, o hino nacional da Colômbia. Muitos pareciam estar vivendo o momento mais esperado desde que entraram na guerrilha. “Aqui estamos. Conseguimos”, diz Gustavo, que veste uma camiseta estampada com o slogan que se repetiria durante todo o dia: “Novo partido para um novo país”.

“É o passo mais importante que demos, o que parecia impossível”, diz emocionado Osvaldo Marenco. “Como não vou chorar, mas foram 28 anos de luta”, afirma entre lágrimas. Foi um dos líderes militares do bloco Caribe das FARC. Aprendeu a viver vestido de roupas camufladas e armado. Abandonou os estudos como advogado e entrou na guerrilha aos 20 anos. Hoje caminha vestido de jeans e camiseta e carrega uma maleta preta na qual leva um par de livros e um paletó para o frio. “Tudo parece muito estranho. Até que me chamem por meu nome de batismo e não de Pablo, como me conheciam lá dentro, mas este é o passo que precisávamos dar, nosso objetivo final era este”, afirma. Confessa que não conseguiu se livrar das botas. “Essas eu não tiro, porque me lembram dos caminhos que percorremos.”

A grande festa da Praça Bolívar

O congresso das FARC terminará em 1 de setembro com um grande ato lúdico na Praça Bolívar de Bogotá ao qual todos os colombianos estão convidados. Rodrigo Londoño fará um discurso final e depois ocorrerá um show do qual participarão grupos das FARC como os Rebeldes do Sul e artistas como Totó La Momposina, representante internacional do folclore caribenho. A Polícia e o Exército não detalharam como será o dispositivo de segurança.

“Acho uma boa ideia realizar a apresentação na Praça Bolívar”, diz Enrique Santiago. “Não devemos interpretá-lo como uma vitória militar ou que as FARC tenham conquistado o poder do Estado. Significa uma normalização política, eles têm o mesmo direito de ocupar um espaço público que os outros partidos. Outra explicação não seria real”.

Essa praça representa o centro do poder da Colômbia onde se concentra o Parlamento, a Casa Nariño (residência presidencial), o palácio da Justiça, a catedral primaz e a prefeitura da cidade. O mesmo lugar em que a ex-guerrilha lançou foguetes em 2002 contra a posse do ex-presidente Álvaro Uribe provocando a morte de dezenas de pessoas.

As FARC e o Executivo não disseram quanto custarão o congresso e o ato final. Os chefes da organização afirmam que receberão dinheiro do Estado segundo o combinado. “O Governo não financiará o evento. Sob os compromissos do acordo de paz vamos administrar cooperação internacional para apoiar as FARC em sua constituição como partido”, afirmou o Alto Comissário para a Paz. “Se não nos financiarem, pediremos esmola na Praça Bolívar”, respondeu Pastor Alape.

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