_
_
_
_
_

O sofrimento do povo mais odiado pelo Estado Islâmico

Cerca de 3.300 yazidis estão em poder do grupo, que realiza um genocídio contra essa minoria religiosa

Yazidis choram seus mortos em cerimônia no cemitério de Lalish
Yazidis choram seus mortos em cerimônia no cemitério de LalishPablo Cobos
Mais informações
“Só quero ir para casa”, diz a menina alemã que se uniu ao Estado Islâmico em Mossul
Estado Islâmico ameaça Espanha em seu primeiro vídeo em espanhol
Cristãos do Iraque ainda temem voltar aos seus povoados
A última trincheira jihadista em Mossul após derrota do Estado Islâmico

Seus olhos azuis reluzem no deserto, atravessando a túnica cinza e vaporosa de linho. Sea Haso olha para um horizonte repleto de tendas brancas ao cair do sol. Cobre a tez pálida para não ser reconhecida, mas mostra algumas de suas feições. Tem 24 anos, parece ter 30. São as marcas de um destino cruel, da escravidão e da dor.

Foi libertada há poucos meses, junto com cinco de seus filhos, após passar três anos como refém do Estado Islâmico. Mas a paz nunca chegou. As noites parecem eternas, os pesadelos se repetem de forma sucessiva, atormentando sua mente. É incapaz de esquecer o marido, assassinado, e os três filhos que continuam cativos em Raqqa, na Síria. Hoje vive no campo de refugiados de Essian, na cidade iraquiana de Duhok, junto com outras 34.000 pessoas, enquanto tenta juntar dinheiro suficiente para pagar o resgate do restante da prole.

Um genocídio

Haso é uma curda yazidi, parte de uma comunidade que vive majoritariamente na província de Nínive, no norte do Iraque, nas regiões do Jabal Sinjar e Shaikha, cujo epicentro é a cidade de Mossul. O Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR) calcula que cerca de 500.000 yazidis vivem no Iraque, e outros 200.000 em países como Síria, Turquia e Irã.

Os yazidis permaneciam escondidos do mundo até o fatídico agosto de 2014, quando as hordas do Estado Islâmico atacaram Sinjar, assassinando, queimando, sequestrando e arrasando tudo o que encontravam. Pelo menos 200.000 pessoas fugiram, e algumas conseguiram escapar para as montanhas e atravessar para a Síria graças à proteção dos milicianos curdos do YPG, que abriram um corredor. Quase 3.300 outros, porém, continuam como reféns. Entre os que supostamente permanecem vivos, a maioria está em áreas como a comarca de Tel Afar, no norte do Iraque, e na cidade síria de Raqa.

Cerca de 500.000 yazidis vivem no Iraque, e outros 200.000 em países como Síria, Turquia e Irã

Com a libertação de Mossul, em julho, os yazidis continuam chegando. Um dos últimos grupos, composto por 36 pessoas, foi resgatado no começo de maio. “A princípio, os novos demoram a se adaptar, os demais os veem com receio, não se sabe que tipo de humilhação sofreram, e nossa sociedade é muito conservadora”, lamenta Haso. Os novos refugiados arrastam os pés com o olhar perdido, muitos são menores de idade. Os recém-chegados são enviados inicialmente a centros especializados onde recebem atendimento médico, psicológico, psiquiátrico e jurídico. Levam meses ou anos para se recuperarem.

Outros nunca voltam, não sobrevivem. Nos últimos meses foram localizadas diversas valas comuns nas regiões tomadas dos jihadistas durante as operações das forças de segurança. Quando o Estado Islâmico retrocede, mata seus escravos e os enterra.

De volta à tenda, Haso parece absorta na contemplação do seu abarrotado interior; entregue a sombrias divagações. “O Daesh [sigla do Estado Islâmico, em árabe] separou os homens das mulheres e crianças. Foi a última vez que vi meu marido. Eles os fuzilaram, cortaram suas cabeças, inclusive dos que aceitavam se converter. Depois faziam leilões, nos davam roupa limpa e nos faziam desfilar”, afirma. Os interessados iam oferecendo dinheiro para levar a sua presa. “Fui vendida três vezes, mas a última foi a pior: o comprador era um sudanês que nos maltratava, nos torturava… Meses mais tarde, o convenci a comprar também os meus filhos, a quem ele obrigava a trabalhar na casa ou mesmo os emprestava a outras famílias para que os usassem nas tarefas domésticas, carregando coisas ou levando recados”.

As famílias pagam os resgates

“Ele se enfurecia sobretudo com os meninos”, conta Sea, enquanto levanta a camisa de um dos filhos, de seis anos, com várias cicatrizes nas costas. Parecem arranhões, chibatadas tatuadas a golpes de vara de oliveira e couro. O outro, de 14 anos, nem sequer fala. Tampouco sorri, apenas balbucia, babando sobre o prato de hummus que segura em suas mãos. A saliva se derrama pelo prato. “Ele sofreu muito, está recebendo tratamento psicológico na escola do campo”, explica sua mãe. “A mulher do nosso senhor era especialmente violenta, nos insultava e maltratava.” Apesar de ter perdido o rastro dos filhos ainda sequestrados, acha que estão em Raqqa. O mais velho, de 15 anos, deve estar lutando na frente de batalha. Da sua outra filha, de 13, tem algumas fotos que os sequestradores do Estado Islâmico lhe enviam periodicamente pelo celular. Nas imagens a menina parece triste, vestida de preto dos pés à cabeça. Ultrajada. “Pedem 15.000 dólares [47.500 reais] por ela, mas não temos tanto dinheiro” afirma.

O Estado Islâmico pede 15.000 dólares pelo resgate da filha de Sea Haso, de apenas 13 anos, mas ela não tem o dinheiro

Ao seu lado, sentada no tapete vermelho sob o mesmo teto de plástico, se encontra sua sogra Arzan Qasin, de 60 anos, que concorda sem parar. Acostumada a escutar o sinistro relato, nada parece perturbá-la. Ela é a matriarca, a verdadeira artífice para que o grupo voltasse a estar unido, ainda que faltem muitos. “Quando o Daesh chegou a Sinjar assassinaram meu marido e meus filhos. Nós mulheres fomos levadas, mas três meses depois soltaram as mais velhas. Não servíamos aos seus propósitos sexuais. Foi quando tentei recuperar meus netos e noras”. Conseguiu a libertação de Haso e de outra delas, que escapa por entre o labirinto de tendas e prefere não dar o nome. Também conseguiu recuperar sete netos. “Paguei 100.000 dólares (317.000 reais) com dinheiro que juntamos de várias famílias e um fundo especial do Governo iraquiano para resgates”, relata.

A minoria étnica mais perseguida pelo EI

Chegam mais refugiados. Caminhões de carga onde os yazidis viajam amontoados como gado vindos de Mossul. Na carroceria faz frio, cheira a suor, urina e fezes. Vêm com a roupa do corpo, sujos e assustados. Só têm alguns cobertores e caixas de comida que jogam das laterais dos veículos quando param às portas de Essian. À pergunta de se há algum yazidi, um corredor se abre. No fundo, em um dos cantos, Hanser descansa em posição fetal. Tem uma luva de lã negra na mão direita. “Meu vizinho disse que roubei, mas é mentira”, explica. “Fui levado a um tribunal composto por três pessoas, mal pude me defender. Depois fui levado a uma ferraria, onde cortaram meu antebraço e o jogaram em uma forja” acrescenta enquanto mostra rapidamente, envergonhado, uma prótese de madeira que, afirma, ele mesmo fez. “Se eles soubessem que sou yazidi teria uma pior sorte”.

Na volta a Essian, alguns meninos disparam com pistolas de madeira entre montes de areia avermelhados. Outros sacodem como se fosse um chocalho um rato morto, inchado e putrefato. Sea Haso interrompe a brincadeira macabra: furiosa, leva seus filhos à tenda, arrastando-os pela orelha e gritando em curdo.

Harzan Qasin pagou quase 100.000 dólares ao EI pelo resgate de duas noras e sete netos

“Olhe, outra foto novo de sua neta”, mostra depois a sua sogra, que continua sentada na mesma posição. Arzan Qasin a olha sem emoção. “Não espere mais lágrimas, perdi minha alma em Sinjar. Vi coisas horríveis que não penso em contar, estupravam as meninas de sete, oito anos. Mas isso é outra história, ou talvez seja a mesma”, reflete e acrescenta: “Desci ao inferno, mas agora pelo bem dos meus, preciso acreditar no paraíso. Um paraíso que existe ainda que pareça tão distante”.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_