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Eleições na Argentina
Análise
Exposição educativa de ideias, suposições ou hipóteses, baseada em fatos comprovados (que não precisam ser estritamente atualidades) referidos no texto. Se excluem os juízos de valor e o texto se aproxima a um artigo de opinião, sem julgar ou fazer previsões, simplesmente formulando hipóteses, dando explicações justificadas e reunindo vários dados

Cristina Kirchner lidera corrida eleitoral na Argentina em um grande experimento de marketing

Quase sem falar, a candidata chega como favorita ao primeiro turno das eleições legislativas que serão realizadas em outubro

Carlos E. Cué
Cristina Kirchner recebe em sua casa presidentes de grêmios estudantis do ensino médio.
Cristina Kirchner recebe em sua casa presidentes de grêmios estudantis do ensino médio.Twitter

A Argentina é um lugar propício para todo tipo de experimentos sociológicos. Acostumados a provar de tudo, apaixonar-se pelo novo e depois descartá-lo rapidamente como se nunca tivesse existido, os argentinos passaram do neoliberalismo extremo ao máximo intervencionismo público sem transições – e quase sempre dentro do peronismo, um movimento com tanta capacidade de adaptação que consegue ser de esquerda e de direita ao mesmo tempo. Graças a isso, é o único grupo que sobrevive com o mesmo nome mais de 70 anos depois de sua primeira vitória eleitoral, em 1946.

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A capacidade de inovação argentina levou o país a optar por substituir o peronismo com o mais improvável dos presidentes, Mauricio Macri, um milionário que vem do mundo do futebol e que renega a política e a ideologia em uma das nações mais ideologizadas do mundo. Para seus rivais, Macri ganhou sobretudo porque funcionou o experimento de marketing político liderado por seu guru, o equatoriano Jaime Durán Barba. No país onde tudo é política triunfou aquele que a abominava – mais uma prova de que fazer previsões na Argentina é absurdo porque sempre ocorre o contrário do esperado.

Em 2015, o peronismo fez o que sempre faz: comícios para multidões, muita gritaria, muitas faixas, uma campanha de pressão porta a porta. É um processo apelidado de “raspagem” porque os partidários passam várias vezes como um ancinho pelos bairros mais populares para confirmarem que as pessoas vão votar pelo peronismo e para ver o que precisam para mudar de ideia, caso tenham outra opção eleitoral. Sempre funcionou, mas daquela vez Macri e seus aliados derrubaram o todo-poderoso peronismo quase sem comícios, com uma boa estratégia nas redes sociais e uma mensagem de mudança.

Cristina Fernández de Kirchner, que não era candidata mas era a grande protagonista da campanha de 2015, sofreu a maior derrota de sua vida. Perdeu todo o poder, o peronismo a culpou por isso e seus problemas judiciais por causa de supostos casos de corrupção se agravaram. Aplicou, então um pragmatismo desconhecido nela até então. Se Macri tinha seu guru equatoriano, ela contratou um espanhol, Antoni Gutiérrez Rubí, um dos maiores especialistas em mídias sociais, e decidiu voltar à política em 2017 usando armas muito semelhantes às que serviram para derrotá-la em 2015.

Gutiérrez Rubí aconselhou uma mudança de imagem radical, e a ex-presidente, que quer superar a dolorida lembrança do fracasso em 2015, aparentemente atendeu suas recomendações em tudo. Reinventou-se uma vez mais como só os políticos argentinos sabem fazer e surpreendeu a todos os que pensavam que ela não escutava ninguém e era incapaz de mudar.

Kirchner deixou para trás os grandes comícios – fez apenas um, enorme, para anunciar sua volta; praticamente não falou durante toda a campanha – ela era famosa por seus discursos longos e agressivos; evitou o confronto com a imprensa – evitou-a completamente, não deu entrevista sequer a seus aliados; e se concentrou nas redes sociais, como Macri fez anteriormente.

Mas a mudança verdadeira é a mensagem. Da guerra contra tudo e contra todos que caracterizou seus discursos antes da derrota de 2015, ela passou a uma imagem de pessoa acessível, amável, que passeia pelos mercados para falar com os comerciantes que estão sofrendo com a queda do consumo, convida um grupo de estudantes para tomar café da manhã em sua cozinha ou conversa com trabalhadores em uma fábrica.

Em seus anúncios de campanha, ela mal fala: os protagonistas são as pessoas que sofrem com a crise. Um giro estratégico radical que desorientou todo o mundo, inclusive o Governo, que via no regresso de Kirchner uma boa notícia, porque é no choque com ela que Macri se movimenta melhor – ele que deve boa parte de seu sucesso ao esgotamento da classe média depois de 13 anos de kirchnerismo. Essa Cristina dócil, que não ataca ninguém, que quase não fala, é muito mais difícil de combater.

Assim, a campanha se tornou um laboratório de técnicas de marketing político, uma espécie de paraíso para os assessores estrangeiros – vários deles espanhóis – que dominam as grandes batalhas eleitorais latino-americanas. Todos estudam os adversários, modificam suas estratégias em função daquilo que triunfa em outros países, e fazem de cada campanha um grande experimento. A Argentina, com sua capacidade inovadora, parece ser um guia para muitos deles. Durán Barba, que fez Macri ganhar, virou uma estrela. Seu último livro, La Política en el Siglo XXI: Arte, Mito o Ciencia, é um sucesso de vendas. Agora a batalha estratégica entre Durán Barba e Gutiérrez Rubí é um dos grandes incentivos da campanha.

A mudança estratégica de Kirchner e de seu consultor espanhol parece estar dando frutos. Praticamente todas as pesquisas a colocam como primeira colocada na corrida para ser senadora por Buenos Aires, a província chave, onde vive 40% do eleitorado e onde está seu núcleo de apoio mais fiel, especialmente entre os pobres da periferia da capital.

O sistema eleitoral argentino é um tanto estranho e, neste domingo, a votação é uma espécie de macro-pesquisa sem consequências reais, porque foram convocadas prévias obrigatórias nas quais não há concorrência dentro dos partidos. É um voto inútil que serve apenas para detectar o humor social. Mas se ela ganhar, como tudo parece indicar, a campanha até as eleições de outubro vai definitivamente ganhar fôlego.

Macri continua contando com um elemento fundamental a seu favor: ainda que Kirchner mantenha um apoio superior a 30% em Buenos Aires, o que pode levá-la à vitória em uma eleição tão dividida e sem segundo turno como esta, seu nível de rejeição é ainda mais alto. Isso faz com que pareça quase impossível que ela volte a ser presidente em 2019, por exemplo. Nas eleições presidenciais, há um segundo turno e o voto de rejeição é essencial, assim como na França, por exemplo.

Outras coisas jogam contra Kirchner. O Governo está aproveitando a crise da Venezuela para animar todos os que apoiaram Macri a votar para tirar o kirchnerismo de cena, um aliado do chavismo. E a corrupção continua fazendo estragos no entorno da ex-presidente. A prisão do cunhado de Julio de Vido, que foi uma figura-chave do kirchnerismo e máximo responsável pelas obras públicas, depois de nove meses foragido, será utilizada pelo atual presidente para mobilizar o voto anti-kirchnerista. Além disso, Macri está começando a obter dados econômicos positivos para reivindicar em sua campanha.

O Governo já tem pronta a sua artilharia para convencer a população de que faz uma melhor gestão, em especial uma enorme implantação de obras públicas. Mas Kirchner não se altera, não responde a nenhuma das provocações da campanha macrista e está convencida de que pode ganhar apelando aos que estão sofrendo com a crise e que culpam Macri por ter aumentado os hiper-subvencionados preços do gás, da luz e dos transportes.

Cada um joga com suas armas. Mas no fundo há uma batalha de marketing político que pode marcar as próximas eleições de toda a América Latina, porque todos os consultores do continente estão olhando para a Argentina e seu mais recente experimento.

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