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A Flip que desceu das tamancas

Opção por realizar debates dentro da igreja e curadoria com mais diversidade renovaram o evento

Lázaro Ramos declama na Flip, em palco na igreja.
Lázaro Ramos declama na Flip, em palco na igreja.

Pode parecer uma contradição. Mas ao transferir o palco principal da programação para dentro de uma igreja, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acaba neste domingo, se dessacralizou. No popular, desceu das tamancas. Perdeu o ar de coisa inatingível. É que nas edições anteriores, a imponência das tendas construídas especialmente para o evento e a luminosidade baixa presente nesses espaços temporários acabava fazendo, muitas vezes, com que os autores parecessem seres de outro planeta. Ao organizar as mesas dentro da igreja da Matriz, um espaço cheio de luz e muito mais despojado – apesar de estarmos falando de um templo religioso –, os escritores e suas falas se aproximaram do público.

A novidade é um bom símbolo do êxito desta 15ª edição da Flip, que tinha o desafio de trabalhar com menos recursos e, apesar disso (e talvez um pouco também por isso), acabou apresentando ao público um mundo literário diverso, às vezes inesperado, e sempre atual. Ainda sobre a transferência do evento para dentro da igreja, Mauro Munhoz, diretor da Casa Azul, associação organizadora da festa, disse em entrevista coletiva neste domingo que, com a nova configuração, a impressão que dá é que se conquistou um “ponto de maturidade na ocupação do espaço público com cultura” nos dias de evento em Paraty.

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“Há um certo embrutecimento das coisas, ódio, intolerância, mas mostramos como as pessoas podem conviver em harmonia”, disse Munhoz ao lembrar que os cinco dias de Flip possibilitaram a convivência entre pessoas diferentes, que talvez nunca se conhecessem, em uma mesma rua, uma mesma cidade. A fala do diretor da Casa Azul levanta ainda mais a curadoria da programação, elogiada nos últimos dias, feita pela historiadora e jornalista Josélia Aguiar. Em entrevista ao EL PAÍS, dias antes do evento ter início, Josélia disse que sua principal preocupação tinha sido mapear a literatura fora dos radares, mas tentando sempre equilibrar os pesos. Não se tratava de virar as costas ao mercado, mas de incluir outras vozes do mundo literário. Conseguiu.

Como a programação foi mais diversa, com o mesmo número de autores homens e mulheres, além da presença de 30% de escritores negros e negras, em muitos momentos as discussões tocaram, naturalmente, questões como preconceito, diversidade, representatividade. Por mais de uma vez, o discurso de autores e a reação da plateia também se voltou contra o Governo de Michel Temer, que, segundo a última pesquisa Ibope é considerado bom ou ótimo por apenas 5% da população. “Fora, Temer”, assim, foi um grito ouvido em diferentes situações – como, aliás, já havia ocorrido no ano passado. As manifestações e a forte temática social levantaram críticas na Internet: o evento teria deixado de lado a literatura, a arte, para ser apenas um instrumento político.

Josélia, desde o início, foi enfática ao recusar o argumento. “Pensei em um programa para uma festa literária e assim foi durante todo o evento”, disse durante a coletiva de imprensa. Para ela, é claro que a temática mais social iria emergir naturalmente, pois as obras dos autores convidados refletem a experiência que têm do mundo. Para exemplificar, ela cita o caso da mesa entre o jamaicano Marlon James e o norte-americano Paul Beatty: é natural que tocaram no assunto Donald Trump. Segundo Josélia, literatura e política estão muito próximas, separá-las seria impossível.

Não foi uma concessão, esse lugar é nosso por direito

E o trabalho de curadoria se refletiu também no público presente. Isso ficou claro nesta sexta-feira de manhã, quando Diva Guimarães, uma professora aposentada, fez um relato sobre o racismo que sofreu ao longo da vida durante uma mesa com a presença do ator Lázaro Ramos. Diva acabou se tornando a cara do novo público de leitores que a Flip ganhou. Pelas ruas e em eventos paralelos à programação oficial da Festa, a presença de um público negro maior era visível. Segundo a escritora Ana Maria Gonçalves, que participou da penúltima mesa, quando se sente representado, o público negro vai aos eventos, “quebrando essa ideia absurda de que não há leitores negros ou de que o negro não lê”.

O desafio, a partir de agora, será manter nas próximas edições da Flip a diversidade que essa, inegavelmente, teve. Isso não parece incomodar Josélia, que encara tudo com tranquilidade. “Não é porque o Lima Barreto é negro que os autores chamados são negros”, disse, ao ressaltar, mais uma vez, que a programação não nasceu para dar uma resposta a uma demanda por mais diversidade, mas que usou da força dessa demanda para criar um evento que reflete melhor o vasto campo da produção literária. Depois de elogiar a curadoria, a escritora Conceição Evaristo – um dos destaques da programação – disse em sua mesa deste domingo: “Não foi uma concessão, esse lugar é nosso por direito”.

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