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Coluna
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Por que nos obstinamos em dizer que o presente é sempre pior do que o passado?

Foram melhores os regimes feudais, as ditaduras militares e as velhas ideologias de direita e esquerda que deixaram milhões de mortos?

Juan Arias

A fase de pessimismo que vive o Brasil, relacionada à corrupção política, à crise econômica e à insegurança da população, pode nos levar ao erro de acreditar que os tempos passados foram melhores, de nos refugiar na esperança em um futuro que não existe. Mesmo levando em consideração que esse não é um dos melhores momentos da história desse país, seria um erro pensar que qualquer passado foi melhor e que a partir de amanhã tudo será maravilhoso.

Indígenas da etnia Kariri Xocó, de Alagoas, participam de julgamento sobre demarcação de terras em 2016.
Indígenas da etnia Kariri Xocó, de Alagoas, participam de julgamento sobre demarcação de terras em 2016.Fotos Públicas/Agência Brasil

Se analisamos a história sem preconceitos, sem ficarmos obcecados pelo pessimismo atual, seremos obrigados a reconhecer que, em noventa por cento dos casos, o passado sempre foi pior. Em tudo. Aqui e no mundo. Vamos olhar alguns exemplos sobre o Brasil e sobre o mundo em geral: Quando a mulher, os diferentes, as crianças e até os animais estiveram mais protegidos em seus direitos do que hoje? Quando existiu no mundo uma consciência maior de que todos temos os mesmos direitos, sem distinção de sexo e cor da pele? E não é preciso voltar a séculos atrás, bastam cem anos. E as diferentes orientações sexuais? Quando se morreu menos de fome? E a medicina? Podemos compará-la como era há somente 50 anos? Meu pai morreu com 41 anos porque a penicilina ainda não era para todos. E a mortalidade infantil?

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E a política? Vocês me dirão que as democracias de hoje são imperfeitas, que os políticos são corruptos. Foram melhores os regimes feudais, as ditaduras militares e as velhas ideologias de direita e esquerda que deixaram milhões de mortos? Quanto a tecnologia e a ciência libertaram o trabalho humano da escravidão? Ainda conheço pessoas no Brasil que quando eram crianças precisavam buscar água na fonte pública e lavar os lençóis no rio. Uma delas me disse: “Hoje abrir uma torneira de água corrente e acender uma luz me parece um milagre”.

Quando existiram menos guerras do que no presente? A Europa passou séculos em combates sangrentos. Hoje, pela primeira vez, ir à guerra não é visto pelas pessoas como uma honra como quando as medalhas dos caídos nas batalhas eram exibidas como um troféu. Hoje o mundo, em sua imensa maioria, prefere apostar pela paz e as famílias não querem que seus filhos lutem em guerras. Ocorreu uma mudança de paradigma.

Apesar de tudo isso, me deparo, até mesmo com pessoas instruídas, que defendem que o passado era melhor. De onde vem essa espécie de miragem, contradita pela evidência dos fatos? O filósofo espanhol Fernando Savater me explicou há alguns anos em nosso livro de diálogos “A Arte de Viver”. “O presente, para cada um em sua época, sempre foi decepcionante, porque podemos imaginar o futuro como aterrorizante ou positivo, enquanto o presente é onde as coisas mostram seu verdadeiro perfil, sua decepção”, afirmou. Para Savater: “Não vivemos em outro lugar além do presente e ao mesmo tempo ninguém fica tão incomodado como quando está nele”. E para frisar a dificuldade de nos reconciliar com o hoje, que é o único verdadeiramente nosso, me lembrou a frase de Schopenhauer: “Não podemos nunca cair do presente, onde tudo nos acontece”.

Algumas vezes me perguntam a que recorrer, nesses tempos de pessimismo e desilusão com nosso presente. Os filósofos nos lembram que o refúgio sonhado não está no passado, que não é nosso e não pode voltar, como também não está na utopia de um futuro que ainda não existe. Seria uma fuga. A única matéria para modelar com nossas mãos é o presente, que devemos lutar para melhorá-lo porque é nosso e não temos outro. Uma mãe trocaria seu filho por outro mais bonito ou mais inteligente? Ela o ama por ser seu, sem se importar se é melhor ou pior do que o da sua vizinha.

Nosso tempo, nosso hoje, com todas as suas fealdades e descontentamentos, com sua insatisfação e desilusão, mas também com a carga de nossa fé na capacidade do homem de transformar a realidade, é nossa única propriedade. Um poeta anônimo escreveu: “El ayer fue/ el hoy es/ el mañana nada/ temblor de amanecer”.

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