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Tribuna
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E se quem decidisse o futuro de Temer fosse você?

Temer ostenta sua baixíssima legitimidade: a falta de voto o habilitaria a fazer as reformas

Manifestação anti-impeachment de Dilma, em 2016.
Manifestação anti-impeachment de Dilma, em 2016.Victor Moriyama (Getty Images)

Um juízo recorrente sobre o Brasil atual afirma que o país se encontraria excessivamente polarizado. É possível, em princípio, lamentar ou celebrar este fato, mas a própria variedade de razões para faze-lo sugerem um quadro com mais tons de cinza. Há quem lamente a polarização porque abriria caminho a aventureiros políticos, e quem a celebre como a oportunidade de exorcizar a doutrinação esquerdista. Há quem lamente a polarização como sequela da era petista, que teria introduzido este vírus exótico no país, e quem a celebre como o momento em que finalmente se porá a corrupção sob controle. Há quem celebre a polarização porque agora, finalmente, a luta de classes estaria às claras; e há quem lamente, não o fato de existir polarização, mas que sua forma presente encubra contradições mais profundas e importantes.

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Uma sabedoria antiga ensina a distinguir entre contradição principal e aspecto principal da contradição: mesmo que se admita que a contradição principal é sempre a mesma, isto não impede que ela se apresente ora sob um aspecto, ora sob outro – e sejam estes diferentes aspectos a determinar por quais polarizações a contradição se expressa a cada momento. Para quem souber agir de acordo com esta sabedoria, a questão será sempre explorar a polarização que se apresenta como modo de chegar à contradição principal. Mas é possível que o contrário ocorra, e que as polarizações aparentes não só tornem impossível chegar ao cerne da contradição principal, como mantenham as coisas em suspenso, sem resolução, apesar de tudo.

“Apesar de tudo” é uma locução que define o momento atual ” tanto quanto “polarização”. Afinal, temos um governante com a maior rejeição em 28 anos, ostentando a peculiar distinção de ser o primeiro presidente em exercício denunciado por crime comum e cercado por um núcleo de Governo que talvez já estivesse todo preso não fosse o foro privilegiado, que, apesar de indícios contundentes de corrupção e ao custo de R$ 15 bilhões aos cofres públicos, consegue apoio de um Congresso em que 65% da população afirma absolutamente não confiar para driblar a ameaça de um impeachment apoiado por 81% da população. Notavelmente, Temer talvez seja único na história em ostentar sua baixíssima legitimidade como virtude: segundo ele, é justamente por não ter submetido e não pretender submeter seu programa ao voto popular que ele estaria habilitado a fazer as “reformas necessárias”. Mas suas reformas são rejeitadas por 71% (previdência) e 64% da população (trabalhista), ao mesmo tempo em que 90% dizem acreditar que o país está no rumo errado.

E ainda assim – apesar de tudo – a máquina segue andando. A razão imediata, é claro, é que a população, apesar de insatisfeita, não tem ido às ruas. Mas qual seria a razão disso? As duas principais respostas oferecidas até aqui indicam uma exaustão decorrente da mobilização constante dos últimos anos e a falta de perspectiva de soluções de curto prazo. Mas a indicação acima nos oferece uma outra hipótese: e se Temer estivesse sobrevivendo não apesar, mas justamente por causa da polarização existente? E se fosse não a ausência de conflito, mas o fato de que as forças em conflito se cancelam mutuamente, que mantivesse o frágil equilíbrio em que ele se apoia?

Neste caso, aquilo que nos impediria de tocar a contradição principal seria justamente as polarizações que a cercam e acobertam. Mas quais seriam, então, a contradição principal e os aspectos pelos quais esta tem se manifestado?

População versus sistema político

O mais estranho é perceber que este momento em que a classe política parece ter se descolado de qualquer controle social vem quatro anos após a maior expressão de poder destituinte da história do país: junho de 2013.

Em 2013, pela primeira vez em décadas, a população soube o que é ver a classe política com medo. E o medo se explicava porque aquele ciclo de protestos, certamente entre os maiores da história nacional, era fora de controle em pelo menos dois sentidos cruciais. Primeiro, por seu tamanho e transversalidade social. (Para além das manifestações no centro das grandes cidades, 2013-2014 também foi um período intenso de greves selvagens, rolezinhos, agitação nas periferias e mesmo entre jogadores de futebol.) Segundo, porque este transbordamento, em sua totalidade, não era controlado nem podia ser contido por nenhuma das forças políticas estabelecidas.

Ambos elementos indicam qual era o aspecto principal pelo qual as tensões sociais se expressavam ali: o antagonismo entre população e sistema político. Por certo, este antagonismo encobria profundas contradições entre os manifestantes, como ficaria evidente a seguir. Ainda assim, descartar 2013 como episódio meramente “antipolítico” é confundir “política” com “sistema político”, e ignorar a possibilidade de que a oposição ao sistema político seja ela mesma política. Lamente-se ou celebre-se, o fato é incontornável: 2013 botava em questão o sistema político e as relações Estado-sociedade como um todo; e se foi incapaz de constituir saídas para os impasses que apontava, foi sem dúvida nossa grande Assembleia Nacional Destituinte.

Como entender a passagem que nos leva daí aonde estamos agora: um Governo sem legitimidade, um congresso sem moral e um sistema político funcionando por conta, exclusivamente segundo seus próprios imperativos, mais alheio à sociedade do que nunca; a descrença na classe política e nas instituições a níveis ainda mais altos que os de 2013; e tanta calma, “apesar de tudo”?

A primeira coisa a considerar é que os protestos de então feriram a besta, mas não a mataram. Nada mais perigoso: quanto mais a classe política se viu encurralada pela rejeição popular e por escândalos de corrupção, mais a sobrevivência imediata passou a ser seu único horizonte – e, portanto, ainda menos preocupada com a legitimidade ela se tornou. E quanto mais preparado para operar com baixa legitimidade o sistema político esteja, mais força será necessária para impor-lhe limites; uma mobilização capaz de fazer diferença hoje teria que ser ainda mais intensa que a de quatro anos atrás.

Mas porque o serviço ficou pela metade? Houve, é claro, a inércia da classe política, que, após uma série inicial de concessões, apostou que, ignorada e reprimida, a onda acabaria refluindo. Mas se a onda refluiu, é muito também por causas internas: a incapacidade de transformar o destituinte em constituinte e as contradições que levaram os protestos à fragmentação, fazendo com que o “fora de controle” se tornasse controlável – não somente por diminuir de tamanho, mas sobretudo por incorporar-se ao jogo político existente. A esta recolonização do poder destituinte pelo poder constituído corresponde a transformação do aspecto principal da contradição: de uma polarização externa (entre população e sistema político) a uma polarização interna (entre frações da classe política).

Lulismo versus antipetismo

No auge das manifestações de 2013, era possível identificar cinco grupos distintos nas ruas.

Num extremo, a juventude à esquerda do PT que dera a partida no processo; no outro, a jovem direita organizada de grupos como MBL e Vem Pra Rua. Mais ao centro, o petismo, cuja base organizada foi às ruas num primeiro momento porque via ali uma oportunidade de influir nos rumos de um Governo pouco afeito ao diálogo; somente depois ela internalizaria a narrativa simplista que reduz a complexidade dos protestos a um fenômeno “de direita”. Havia ainda aqueles que talvez não se identificassem integralmente como direita, mas que eram fortemente mobilizados pelo significante vazio do antipetismo; esta seria, dois anos depois, a base social das manifestações pró-impeachment. Por fim, bem no meio, uma grande massa de pessoas sem afiliação política definida, sensíveis ao mesmo tempo à pauta anticorrupção e a demandas pela qualificação dos serviços públicos e expansão dos direitos, que tinham ali sua primeira grande experiência de participação política. Destes cinco grupos, os três primeiros eram convocantes e os dois últimos, convocados – mobilizados pelos primeiros e/ou pelos meios de comunicação.

Se hoje as ruas estão vazias, isto tem muito a ver com o que ocorre à medida em que a polarização entre lulismo e antipetismo engole o antagonismo entre população e sistema político. Dos três grupos convocantes, apenas a jovem esquerda autônoma segue operando como variável independente, mas sem encontrar interlocutores; isolada por seus próprios erros e pela brutal repressão de que é vítima, ela se desarticula e perde o poder de convocação que havia adquirido. Os outros dois sobrevivem, mas incorporados ao jogo da classe política. A base petista volta a subordinar-se integralmente às conveniências táticas de seus dirigentes; MBL, Vem Pra Rua e outros viram parceiros de jogo dos partidos que vêm corteja-los, desempenhando papel crucial na criação do contexto para que o Congresso fizesse o impeachment.

Acontece, porém, que estes dois setores se cancelam mutuamente. Primeiro, no poder de convocação: um é capaz de mobilizar o antipetismo, mas não a esquerda; o outro ainda é a força hegemônica da esquerda (um tanto por falta de opções), mas não só não possui mais a base organizada de outrora, como tem sua capacidade de mobilizar a sociedade como um todo severamente limitada pela barreira do antipetismo. Segundo, nos interesses: diante de um Governo morto-vivo, nenhum dos lados se move por medo que o outro saia em vantagem.

Mais que isso, nenhum dos dois vê as ruas como variável independente, mas apenas como instrumento do jogo partidário. Assim, os manifestantes anticorrupção, que acreditavam ter derrubado uma presidente sozinhos em 2016, perceberam em 2017 que sua recém-descoberta musculatura cívica só funcionava quando ativada por grupos como o MBL; quando estes pararam de convocar protestos, acomodando-se à corrupção de seus aliados, o movimento morreu. Já o PT, além da vontade contraproducente de estampar seu domínio em tudo de que participa, faz o jogo ambíguo de quem ainda acredita ter mais a ganhar em negociações de gabinete. Em ambos os casos, interessa acionar a população apenas na hora e medida exatas: o suficiente para servir de trunfo, mas não tanto que as coisas pudessem escapar ao controle e bagunçar o tabuleiro. Arriscar sempre o mínimo, para não correr o risco de um retorno em excesso – um transbordamento como foi 2013.

É no vazio desta polarização autocancelante que o sistema segue operando, a cada dia com menos pudores. Suspenso sobre o abismo, Temer vai passando à história como o incrível presidente que desafiou a gravidade: todos julgavam que deveria cair, mas ninguém se deu o trabalho de derrubar.

Contradição principal

Como as ruas deixaram de funcionar como variável independente, não é de estranhar que a única força capaz de ocasionalmente embaralhar os planos da classe política seja o judiciário. Que não é, decerto, nem neutro, nem isento de contradições internas, nem desprovido de interesses e cálculos próprios. Mas justamente porque estas contradições, interesses e cálculos são em alguma medida próprios, sua interferência torna-se irredutível ao jogo desta ou daquela facção partidária e consegue desestabilizar o que, de outro modo, já teria virado um acordão de proporções bíblicas. Esta judicialização do vazio deixado pela polarização entre população e sistema político alcança um forte simbolismo no fato de que o judiciário tenha ido atrás de alvos como Sergio Cabral e a máfia dos transportes – inimigos prioritários dos manifestantes em 2013, mas que gozavam, na época, do apoio geral da classe política, à esquerda e à direita.

É evidente, no entanto, que confiar ao judiciário a responsabilidade de resolver a crise política tampouco é uma opção. Primeiro, porque subordina os interesses da população ao jogo de diferentes facções, algumas explicitamente partidarizadas, da casta judicial; segundo, porque esta, tanto quanto a classe política, é uma caixa-preta de enormes privilégios e baixíssima responsividade, movida por preconceitos e interesses corporativos mais que pela sensibilidade ou pelo controle social.

A paralisia que resulta deste quadro é ainda mais dramática porque, apesar das polarizações que a obscurecem, poucas vezes a contradição principal esteve tão à mostra. Ela aparece de maneira cristalina na dissonância entre um discurso de austeridade que convoca todos a fazer sacrifícios e a mais descarada manutenção de privilégios. Seus bastidores são expostos nas revelações da Lava Jato, que demonstram que o cerne da questão da corrupção nunca foi outro que não o problema do acesso diferencial ao Estado: o fato de que, para a maioria, o Estado só aparece na forma de desrespeito, serviços ruins e violência policial, enquanto para uns poucos ele oferece contratos milionários, informações privilegiadas, bancadas suprapartidárias e legislação feita sob encomenda (ou em causa própria).

A clivagem entre os que podem muito e os que podem muito pouco se expressa na própria natureza deste mandato-tampão, prole monstruosa das bodas entre uma classe política disposta a tudo para escapar à justiça e uma classe empresarial interessada numa oportunidade única para fazer passar reformas que dificilmente seriam aprovadas pelas urnas. E embora ninguém duvide que a crise exige reformas, as pesquisas sugerem que maioria da população suspeita que aquelas que estão sendo feitas são “inevitáveis” apenas no contexto de uma escolha prévia, perfeitamente evitável, tomada a nossa revelia: que o custo da crise seja pago não por quem mais tem (e se beneficiou da farra de isenções que descarrilou a economia), mas pelos mais pobres e pela classe média.

Eis a contradição principal, portanto, que a polarização entre antipetismo e lulismo obscurece. Do lado do antipetismo, porque este entorpecente poderoso é capaz de fazer com que parte da classe média se identifique com interesses que não são seus e prefira ser prejudicada a apoiar medidas redistributivas que entende serem “de esquerda”. Do lado do lulismo, porque este também é um significante cada vez mais vazio. Na ausência das condições econômicas e políticas que o tornaram possível há uma década atrás, ele prefere velhos simbolismos à realidade presente, insiste em fingir que a crise de representação iniciou-se com o impeachment, interdita qualquer discussão de programa futuro ou erros passados e tudo reduz a uma única e duvidosa aposta: carta branca a um candidato que talvez sequer seja elegível para que ele vá e negocie uma solução mágica.

Ao que tudo indica, nada se moverá até que uma nova polarização ocupe o lugar desta; este, aliás, é o papel que uma campanha por eleições diretas poderia ter preenchido. Não pelas eleições em si – qualquer resultado agora ou em 2018 certamente será sintoma, não cura, da crise política –, mas pela mobilização, que reforçaria novamente o antagonismo entre população e sistema político, cortando transversalmente a polarização existente e quem sabe vencendo sua inércia, de modo a permitir à população fazer algo que tem feito muita falta: exercer a capacidade de impor limites.

Niilismo no poder

Porque de impor limites se trata. O impasse em que estamos tem um efeito desastroso, que é tranquilizar o sistema político de vez que o business as usual não será punido. Os estragos que isto ainda pode causar são incalculáveis: a aprovação das reformas em pauta, decerto, mas sabe-se lá que aberração de reforma política, quais novas gambiarras institucionais ou retrocessos ambientais. Acima de tudo, e com quase unanimidade entre a classe política, uma operação abafa contra a Lava Jato que seguramente não significará o fim dos abusos judiciais – estes seguirão existindo para os mais pobres ou segundo a conveniência política –, mas um retrocesso histórico na possibilidade de combate à corrupção.

Em resumo: o niilismo no poder. E um placar cada vez mais desvantajoso para que depois se possa correr atrás do resultado.

É impossível dizer de onde pode vir a centelha capaz de constituir uma nova polarização e deslocar o aspecto principal da contradição; mas é improvável que ela venha de qualquer um dos polos dados. Fato é que, com a continuidade da crise e a opção dos governantes por políticas que aumentam a desigualdade, estamos sentados num barril de pólvora; as coisas ou terão de se resolver, ou ficarão ainda muito piores. E o material inflamável está concentrado sobretudo entre a juventude que cresceu durante o lulismo com a perspectiva de uma vida melhor que a de seus pais e agora assiste a seu horizonte de expectativas ser drasticamente comprimido de uma hora para outra. Este componente geracional é um ingrediente provável dos antagonismos futuros.

Isto não significa que algo acontecerá; a descrença, quando é muita, se converte facilmente em desalento e imobilismo. Mas é bom lembrar que há pouco mais de quatro anos pouca gente tinha ouvido falar do Movimento Passe Livre ou do MBL. A conclusão a tirar daí não é, obviamente, que se deve aguardar passivamente por uma irrupção messiânica, mas antes o contrário: as oportunidades aparecem para quem se organiza. E se quiser defender seu futuro, a juventude dos protestos de 2013 e das ocupações de escolas, maior prejudicada pela situação atual, terá de amadurecer politicamente rápido.

Por duas vezes nos últimos quatro anos, multidões foram às ruas em massa, e em ambas descobriram que a inércia do sistema era maior do que pensavam; nem a revolução estava logo ali na esquina, nem o impeachment era a cura de todos os males. A decepção, e a anomia em que agora vivemos, parece gerar uma incapacidade de implicar-se subjetivamente, de pensar a política na primeira pessoa. Haja visto o revezamento de impotência que percorre as redes sociais a cada novo escândalo: “paneleiros” lamentam que ninguém faça nada, “petralhas” perguntam onde estão os “paneleiros”, e “isentões” ironizam, questionando o silêncio dos “petralhas”. Quem deveria agir é sempre um outro; é como se nossa vida política tivesse se tornado um filme de terror, mas nós o estivéssemos apenas estamos assistindo.

É um sentimento de impotência que nasce, por certo, de compreender a pouca força que se tem diante da enormidade do desafio. Desistir ou dizer que nada disso importa, porém, não são opções viáveis – até porque o Estado seguirá existindo e tendo impactos negativos em nossas vidas. Só será possível vencer o impasse se se souberem extrair das decepções uma lição positiva: que não existem atalhos, que a travessia dessa crise será longa e exigirá organização e vigilância, e que as pessoas não devem depender da boa vontade de intermediários para realizar sua vontade, mas estar preparadas para impor esta vontade a eles, custe o que custar.

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