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Coluna
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Coração abaixo de zero

Sete graus de frio e a sensação térmica de falta de humanidade na política. Hora de abraçar o rancor de João Antônio em SP

Moradores de rua em frente à igreja da Sé, em São Paulo.
Moradores de rua em frente à igreja da Sé, em São Paulo.NACHO DOCE (REUTERS)

Você vende uma “cidade linda” e manda jatos de água fria no espinhaço dos “feios, sujos e malvados” - a saudosa maloca do filme de Ettore Scola-, às cinco da manhã, sete graus no termômetro, sensação térmica de falta de humanidade em São Paulo. Você vende uma capital gastronômica e proíbe a distribuição de sopa quente aos mulambos e farrapos da área da Cracolândia. Você vende a modernidade hoteleira e derruba cortiço com moradores dentro... Os vendilhões deste inverno não são novidade para os novos baianos da Pauliceia maquiada. Quem flana pelo Brás, Bexiga e Barra Funda, sabe disso. Quem salta na estação da Luz ou na Sé, o pelourinho dos caminhos que se bifurcam, bem conhece os “bons tratos” no lombo paulista.

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Quem repete os rastros do do escritor João Antônio, no guia Abraçado ao meu rancor, livro de 1986, sabe bem da crueldade do roteiro cartográfico dos desvalidos. O que se vendia à época, sob o comando do prefeito Jânio Quadros -também munido de vassoura de gari- era a mesma mercadoria, o mesmo fetiche da limpeza higienista. O repórter/personagem do conto recebe uma pauta aparentemente burocrática: escrever sobre uma campanha oficial paulistana que vende o turismo de negócios, a gastronomia, as lojas chiques, a modernidade da melhor cidade da América do Sul. “Na noite de São Paulo você esquece que o dia vai nascer”, exaltava o marqueteiro.

Do tédio do coquetel de lançamento da campanha, com autoridades e publicitários, o repórter segue para uma angustiada viagem ao fim da noite de uma metrópole que desmente a propaganda. Vale cada linha a leitura, você se sente mandando o bauru do Ponto Chic com um chope escuro, como relata o conto-reportagem ao chegar no Largo do Paissandu. Aproveite o reduto boêmia do Centrão, a gente nunca sabe até quando vai a resistência histórica. Se der sorte, como este cronista, ainda pega um show da banda Fábrica de Animais ali do lado, na galeria Olido. É rock'n'roll, baby. Abraçado ao meu luxo você vende, meu bem, que o frio de São Paulo está parecido com o de um país desenvolvido, como disse dona Rosângela Lyra, presidente da Associação de Comerciantes dos Jardins, à Folha de S.Paulo, na mesma edição que tratava do banho gelado da prefeitura na maloca da praça da Sé. Humaníssimo despertador.

A mesma empresária acrescenta um detalhe, com uma simples vírgula entre o sonho e o que temos para hoje: “O frio de São Paulo está parecido com o de um país muito desenvolvido, o que não somos ainda". Que pena. Seguimos no rastro de João Antônio, o discípulo do pingente Lima Barreto: “Esse frio! Passos curtos e corridos (...), vento despeja uma estirada que vai nos ossos. (...) Nas bancas de jornais, primeiras páginas berram. Há um bebê-diabo nascido no coração do ABC, no Dia das Mães, apavorando a opinião pública. (...) A meningite acena, baixa socando os lados de Osasco, onde um escândalo envolve um convênio do governo e fala-se em nova crise corintiana, temperada pela frente macumbeira do Jabaquara. Uma perspectiva de avanço na alta da Bolsa de Valores.” Agora uma parada reflexiva, quem sabe no boteco afro-nordestino Nganda Armeê Rouge, quase na esquina da São João com a Ipiranga.

Deus dá o frio conforme o grau de desenvolvimento de um país ou conforme a falta de solidariedade dos governantes? Se o frio vem maior que o cobertor, calma aí, a equipe de zeladoria (sic) do moderníssimo alcaide desta Pauliceia tem um jeito de piorar a sensação térmica e humanitária da maloca, esguicho de água gelada neles, acorda trupe feia, suja e malvada que está na hora da “cidade linda”, varre essa mundiça de novo para debaixo do tapume da realidade.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor do romance “Big Jato” (Companhia das Letras). Comentarista dos programas “Papo de Segunda” (GNT) e “Redação Sportv”.

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