_
_
_
_
_

Centenas de milhares de turcos se manifestam em Istambul contra Erdogan

Líder da oposição anuncia que mobilizações massivas continuarão

Andrés Mourenza
Kemal Kiliçdaroglu carrega um cartaz com a palavra ‘justiça’.
Kemal Kiliçdaroglu carrega um cartaz com a palavra ‘justiça’.ERDEM SAHIN (EFE)

“Que ninguém pense que isso acaba com esta manifestação, foi apenas o primeiro passo.” Em um duro discurso em que chamou o Governo turco de ditatorial e o comparou com a Alemanha de Hitler, o líder da oposição, Kemal Kiliçdaroglu, presidente do partido socialdemocrata CHP, se afirmou como novo líder da contestação ao polêmico presidente turco Recep Tayyip Erdogan. A manifestação liderada por Kiliçdaroglu, que reuniu em Istambul centenas de milhares de pessoas (mais de um milhão segundo os organizadores), foi o ponto final da Marcha pela Justiça, que durante 25 dias levou o político de centro-esquerda a percorrer os mais de 400 quilômetros que separam a capital, Ancara, de Istambul, onde fica a prisão em que está detido seu colega e deputado do CHP, Enis Berberoglu, condenado a 25 anos de cadeia por vazar para a imprensa um vídeo que demonstra que o Governo turco enviou armas ilegalmente aos rebeldes sírios. Essa condenação, que Kiliçdaroglu considera “ditada” pelo próprio Erdogan aos tribunais, foi “a gota que fez transbordar o copo” da paciência da oposição e levou o líder CHP a começar sua marcha.

Mais informações
Gays desafiam proibição à parada e são reprimidos com violência na Turquia
“Papai, por que você não vai trabalhar?”: expurgo na Turquia afeta quase um milhão de pessoas
Mais de 70 dias sem comer para que Erdogan lhes devolva o emprego
Curdos tomam cidade estratégica para conquista da ‘capital’ do Estado Islâmico

A marcha e a manifestação de Istambul foram o primeiro grande braço de ferro nas ruas entre a oposição e o Governo turco desde a revolta de Gezi, em 2013, e serviram para dar visibilidade ao descontentamento daqueles que não apoiam os islamistas que dirigem o país há quase 15 anos. “Marchamos pela justiça que não existe na Turquia, pelos deputados e jornalistas presos, pelos professores e acadêmicos demitidos, pelos setores mais pobres da Turquia. Um Estado não pode viver sem justiça. Por isso, a primeira coisa é a justiça e o respeito ao [Estado de] direito. E [atualmente] o Poder Judiciário está sob o monopólio do Executivo”, denunciou Kiliçdaroglu.

À frente dele se estendia um mar vermelho e branco composto por milhares de bandeiras da Turquia e faixas e cartazes com a palavra Adalet (Justiça) brandidos por milhares de manifestantes vindos de várias cidades do país e de todos os bairros de Istambul. “Em um país onde não há justiça, nada pode funcionar”, justifica Fuat Karakaca, um engenheiro aposentado de 77 anos que acompanhou a marcha durante a última semana, dormindo em uma esteira que carregava nas costas. A pele dos seus braços e o rosto avermelhado pelo sol eram a prova de suas palavras: “Há tempos deveríamos ter feito algo assim, mas melhor tarde do que nunca. E eu acredito que terá um efeito positivo”.

Erkan Yilmaz, outro participante da manifestação, é testemunha da situação que se vive na Turquia por causa de sua profissão, advogado: “Aqueles que governam na Turquia mudam as leis a seu bel-prazer a cada minuto, de modo que não podemos chamar isto de Estado de direito, é uma comédia”. Mas o protesto iniciado pelo líder da oposição lhe deu esperança de que as coisas mudarão: “Porque isso não pode continuar assim, não pode ser que esses palhaços continuem governando um país tão grande como se fosse sua fazenda”.

Embora entre os participantes houvesse representantes de todos os setores profissionais e sociais, a maioria era de membros da classe média laica da Turquia, essa classe média que aumentou em número durante os anos de crescimento econômico experimentado sob o Governo de Erdogan, mas que, ao mesmo tempo, vê seu estilo de vida ser atacado pelos islamistas. A conversão de muitas escolas públicas e escolas religiosas, a retirada do estudo da evolução do currículo escolar, as restrições ao consumo de álcool, a marca religiosa que, cada vez mais, tinge os discursos das autoridades turcas, assustam a Turquia laica, como deixa claro Makbule, empregada de uma loja de relógios e mãe de dois filhos: “Estou aqui pelos meus filhos, para que possam viver no futuro em um país justo. Porque há uma pessoa que quer assumir o controle absoluto do país e marginalizar todos aqueles que não pensam como ele”.

Cada vez mais belicoso, o mesmo Erdogan que exige que o CHP aceite o ditame dos tribunais e a condenação do seu deputado, chama de “terrorista” o líder do partido curdo HDP, Selahattin Demirtas, preso há meses, e de “golpistas” os dez ativistas de direitos humanos presos esta semana em Istambul, apesar de a Justiça ainda não ter se pronunciado sobre as acusações. “Erdogan diz que esta ou aquela pessoa será duramente punida. Como sabe disso?, perguntou Kiliçdaroglu, que imediatamente respondeu: porque ele mesmo é quem dá a ordem aos tribunais”.

“Aqueles que se manifestam são pessoas normais, que amam seu país. Representamos 50% da população”, dizem Volkan e Gökçe Avci, um jovem casal de bancários, referindo-se ao resultado do plebiscito de abril, no qual foi votada uma reforma constitucional que dará amplos poderes ao presidente turco, mas cujo resultado mostrou que a sociedade do país euroasiático está dividida em duas metades praticamente iguais: a daqueles que amam Erdogan e a daqueles que o odeiam. “Se nós que participamos da Marcha pela Justiça somos terroristas –continua Volkan–, então a metade deste país é de terroristas.”

Apelo à volta do sistema parlamentar

Andrés Mourenza

O líder da oposição, Kemal Kiliçdaroglu, fez em Istambul um “chamamento pela Justiça” de dez pontos, no qual instou o Governo islamista a deixar de usar como desculpa para seus expurgos e manobras políticas a fracassada tentativa de golpe de Estado do ano passado. Entre as medidas exigidas pela oposição estão o fim do estado de emergência vigente no país há quase 12 meses, a libertação dos mais de 150 jornalistas presos, a anulação do polêmico referendo de abril e a reversão da reforma constitucional aprovada no plebiscito que, a partir de 2019, transformará o sistema turco num regime presidencialista. Portanto, exige que seja preservado um sistema “parlamentar e democrático” em que se respeite a separação de poderes e o poder político “não dite ordens” aos tribunais.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_