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Setores reacionários podem usar crise na USP para sabotar cotas, diz especialista

Doutora em educação, Viviane Angélica Silva defende ampliar ajuda de custos a estudantes Estudo feito por ela mostra que só 2% dos professores da instituição se declaram pardos ou pretos

Felipe Betim
Cartaz pede por cotas raciais na USP.
Cartaz pede por cotas raciais na USP.Facebook

Apesar de ser considerado o berço da intelectualidade e da modernidade no Brasil, o Estado de São Paulo chegou atrasado na implementação de políticas de cotas em seus cursos de graduação para estudantes negros e/ou vindos de escolas públicas em suas universidades. O Conselho Universitário da USP, o melhor centro de ensino superior do país segundo diversos rankings internacionais, anunciou nesta terça-feira a adoção desta política, que visa a tornar suas salas de aula mais diversas e reduzir o gap social entre brancos e negros que perdura desde os tempos da escravidão. Segundo dados de 2016 da Fuvest, apenas 17,4% dos alunos da USP se declararam pretos, pardos e indígenas. Já neste ano, somente 37% dos alunos da universidade vieram de escolas públicas. A decisão, resultado de uma longa batalha do movimento negro paulista, chegou um mês depois da Universidade de Campinas (Unicamp) anunciar a adoção do mesmo sistema.

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Doutora em Educação pela USP, Viviane Angélica Silva explica que, apesar de haver motivos para comemoração, a luta ainda não terminou. Em crise, a USP vem cortando muitas das políticas de permanência estudantil voltadas para alunos sem recursos e que vivem nas periferias. Com a aprovação das cotas, estará a USP preparada para receber ainda mais alunos com este perfil? "Além de monitorar o modo como as cotas serão implementadas, é necessário ampliar as políticas de permanência estudantil. Serão tempos de grandes desafios, já que a USP atravessa a maior crise financeira de sua história, o que pode ser muito bem utilizado por setores reacionários que jamais admitirão a importância das cotas raciais para ingresso nesta instituição", explica Silva em entrevista ao EL PAÍS, por e-mail.

A especialista é autora de um estudo de 2015 sobre a história do debate racial na universidade. O atraso em adotar as cotas está, para ela, relacionado aos princípios fundacionais da universidade. "A USP nasceu com a missão bandeirante de trazer as ferramentas intelectuais para que a nação se conscientizasse de si, das suas potencialidades e destinos. O projeto previa uma universidade que deveria voltar-se para a formação das classes dirigentes, compreendidas como muito necessárias em um país tao diverso como o Brasil", explica ela. 

Apesar do atraso na implementação das cotas, ela conta que a USP foi a precursora deste debate, liderado ainda em 1993 pelo então estudante de jornalismo e hoje professor Fernando Conceição. Dez anos depois, em 2003, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) tornou-se o primeiro centro de ensino superior público a adotar, não sem polêmicas, o sistema em sua graduação. Só em 2012 é que a política de cotas se tornaram lei em todo o país. Em 2017, o STF votou pela adoção de cotas raciais de 20% também em concursos públicos. Os contrários ao sistema acreditam que a qualidade dos centros públicos tende a cair e que a medida vai contra o conceito de meritocracia que é utilizado no vestibular. Entretanto, segundo a própria UERJ, 48,9% dos beneficiados pelo sistema tiveram média acima de 7 no final do primeiro ano de curso. Entre os demais alunos, 47,1% tiveram média similar ao demais.

Viviane Angélica Silva, doutora em educação pela USP.
Viviane Angélica Silva, doutora em educação pela USP.Facebook

Apesar do debate racial na USP existir desde sempre, mesmo em tempos em que só existiam as Faculdades de Direito e de Medicina – fundadas antes mesmo da própria universidade, em 1827 e 1912 respectivamente –, o caminho até a adoção das cotas foi longo e difícil, segundo Silva. "Estas duas escolas fortaleceram em âmbito nacional as políticas eugenistas que promoveram ideologias de branqueamento nacional físico e simbólico, seja com a política de imigração europeia, seja com a negação da importância da presença negra na construção deste país", diz. A posterior fundação da USP na década de 30 e a formação da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras abriu as portas para que, somente décadas mais tarde, se questionasse a teoria da democracia racial. Isso só começou a acontecer, conta Silva, com o sociólogo Florestan Fernandes. "Com a tese A Integração do Negro na Sociedade de Classes, ele ofereceu grandes avanços no entendimento do modo como opera o preconceito racial no Brasil, apesar dos limites e equívocos de interpretação".

Até então a USP havia conseguido integrar imigrantes europeus recém-chegados e mulheres na universidade, mas não os negros. "Embora não se possa negar a importância dos estudos da Escola Paulista de Sociologia para o entendimento das desigualdades raciais, não se pode dizer que favoreceu o acesso da população negra paulistana à maior universidade pública brasileira", explica a especialista, para quem a discussão só ganhou força com a entrada do professor Kabengele Munanga na instituição. "Herdeiro tardio da Escola Paulista de Sociologia, e bastardo, por ser negro e africano, ele consegue acessar esta universidade na condição de intelectual e portanto sujeito da construção de saber neste campo temático", argumenta. Ele e o professor Edson Moreira "foram dois importantes docentes negros da USP que nos anos 90 puxaram o debate sobre as desigualdades de acesso à população negra a esta universidade exigindo políticas de reparação".

O debate se intensificou nos últimos anos entre professores e estudantes após a aprovação do sistema de cotas em todo o país. Diversos eventos sobre o tema foram realizados, o último deles no final de junho deste ano: a Virada Cultural "Por que a USP não tem cotas?", que teve a participação de vários artistas. Nas vésperas de sua aprovação, quase 300 professores entregaram um abaixo-assinado exigindo a adoção de cotas. Agora que a política foi aceita pelo Conselho Universitário, sua aplicação será gradual: no vestibular de 2018, 37% das vagas serão destinadas a alunos de escolas públicas; em 2019, 40%; em 2020, 45%; e a partir de 2021, 50%. Dentro desta cota destinada a alunos da rede pública serão destinadas vagas para pretos, pardos e indígenas. O espaço reservado será definido de acordo com dados do IBGE sobre a presença dessa população no Estado de São Paulo. Como hoje este índice é de 37%, no ano que vem a cota racial será de 13,7% do total de vagas.

Pouca diversidade entre professores

A pesquisa de Silva, publicada em 2015, também revelou a pouca diversidade entre os professores da USP: dos cerca de 6.000 docentes, apenas 112 se declaram pardos e oito se definiram como pretos. A especialista explica que existe uma "geração de jovens doutores negros" formados pela USP que "atuam na docência de outras universidade públicas". A universidade, explica, "tem formado intelectuais negros, mas não tem absorvido estes quadros no seu corpo docente".

A adoção de cotas na graduação ajudará a mudar este panorama? "Segundo os docentes entrevistados em minha pesquisa, isso só irá mudar quando as cotas raciais forem adotadas na pós-graduação e nos concursos para docente". Entretanto, "se a USP resistiu tanto à adoção desta política na graduação, podemos esperar uma forte batalha política para que sua face docente enegreça também", aposta. "Ainda hoje é possível contar nos dedos os/as docentes negros/as na história desta faculdade. E essa história se repete noutros institutos, a exemplo do departamento de Antropologia, onde o professor Kabengele Munanga foi o primeiro e único professor desta disciplina. Cerca de um quarto de unidades da USP sequer possuem docentes autodeclarados pretos. Ou seja, não é possível a permanência dos atuais critérios de concursos públicos baseados num clientelismo que não favorece a crescente intelectualidade formada pela USP", conclui.

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