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Macron: “Estendo a mão a Donald Trump. E desejo que ele mude de opinião”

Na primeira entrevista desde que assumiu a presidência, Emmanuel Macron defende um orçamento comum para a zona do euro, os direitos dos refugiados e a construção de uma “Europa que protege”

Marc Bassets
Emmanuel Macron, no Palácio do Eliseu, nesta terça-feira durante a entrevista.
Emmanuel Macron, no Palácio do Eliseu, nesta terça-feira durante a entrevista.Jean-Christophe Marmara

Em tempos de euroceticismo e nacionalismo, a imagem era insólita: nos comícios eleitorais de Emmanuel Macron (Amiens, 1977), tremulavam bandeiras europeias. O que era um símbolo frio e burocrático para seus seguidores se tornou um símbolo cálido e político. Agora, o pró-europeu Macron já é presidente e coloca a Europa no centro de sua agenda. Nesta quinta e sexta-feira participará de seu primeiro Conselho Europeu. Antes, quis apresentar sua visão da Europa e do lugar da França no tabuleiro internacional em uma entrevista — a primeira desde que assumiu a presidência — a oito jornais europeus: Le Soir, The Guardian, Gazeta Wyborcza, Il Corriere della Sera, Le Temps, Süddeutsche Zeitung, Le Figaro e EL PAÍS.

Pergunta. Com a nova legitimidade alcançada após as eleições legislativas, a França volta à Europa? Representa um novo tipo de liderança no continente?

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Resposta. A liderança não pode ser decretada: ela é construída convencendo outros países e outros atores e é comprovada com base nos resultados obtidos. Seria presunçoso dizer que, a partir de agora, a França exerce uma nova liderança europeia. A verdadeira pergunta é a do objetivo de nossa ação. E o ponto de partida é a crise enfrentada pelas democracias ocidentais, que foram construídas no século XVIII sobre um equilíbrio sem precedentes entre a defesa das liberdades individuais, a democracia política e a criação de economias de mercado. Um círculo virtuoso permitiu que as liberdades individuais fossem reconhecidas, que se desenvolvesse o progresso social e que as classes médias tivessem expectativas de progresso. Desde o fim da época dourada do capitalismo, a dúvida se instalou. A França, que tinha o modelo social mais elaborado, sofreu cruelmente. Quando observamos o mundo de hoje, o que vemos? A ascensão de democracias não liberais e o extremismo na Europa, o ressurgimento de regimes autoritários que questionam a vitalidade democrática e os Estados Unidos se retirando parcialmente do mundo. Este contexto é agravado pelo aumento das incertezas e dos conflitos. As crises se multiplicam no Oriente Médio e no Golfo, e as desigualdades se agravam em todo o mundo.

P. De onde vem essa instabilidade?

R. Não tem uma única causa. Ocorre, em parte, devido às profundas desigualdades criadas pela ordem mundial e pelo terrorismo islâmico. A estes desequilíbrios, acrescentam-se os do clima. Aqueles que pensam que a luta contra [as mudanças do] clima é um capricho de boêmios burgueses estão profundamente errados. Portanto, a questão principal não é saber se há ou não uma liderança francesa, não é saber se temos mais força do que outros. É, em primeiro lugar, saber como defender o nosso bem comum, ou seja, a liberdade e a democracia, a capacidade das pessoas e de nossas sociedades de serem autônomas, de continuar sendo livres, de garantir a justiça social e de proteger nosso planeta por meio do clima. Sem estes bens comuns, não há um futuro desejável nem sustentável. Nosso desafio consiste em saber como vamos vencer esta batalha, da qual a Europa, estou convencido, tem a responsabilidade. Por quê? Porque a democracia nasceu neste continente. Os EUA amam a liberdade, mas não apreciam a justiça como nós. A Europa é o único lugar no mundo onde as liberdades individuais, o espírito da democracia e da justiça social se uniram até este ponto. Portanto, a pergunta é a seguinte: será que a Europa conseguirá defender seus valores profundos que foram espalhados pelo mundo durante décadas? Ou vai se esconder diante da ascensão das democracias não liberais e dos regimes autoritários?

P. O que pode ser feito concretamente para novamente impulsionar a Europa? Qual é seu projeto para refundar a zona do euro? E como convencer os alemães da relevância de seu projeto?

R. Se não somos conscientes do desafio, que é nosso desafio, podemos continuar passando noites inteiras refletindo sobre a localização do próximo organismo europeu ou sobre como gastar este ou aquele orçamento... Então, nos colocaríamos fora da história. Eu não escolhi isso. Angela Merkel também não. A questão é saber como conseguiremos restabelecer a dinâmica, a capacidade de convencer, porque não se trata apenas de implementar políticas para países ou povos. Temos de ser capazes de convencê-los, de fazê-los sonhar. A França não terá nenhuma capacidade motora se não tiver um discurso claro e se não observar o mundo com um olhar lúcido. Mas tampouco a terá se não fortalecer sua economia e sua sociedade. Por isso pedi ao Governo para iniciar reformas fundamentais, que são indispensáveis para a França. Nossa credibilidade, nossa eficácia e nossa força estão em jogo. Mas a força de alguns não pode se alimentar durante muito tempo da fraqueza dos outros. A Alemanha, que se reestruturou há cerca de 15 anos, comprova hoje que esta situação não é viável. Portanto, meu desejo é que possamos construir uma força comum. Meu método para o casal franco-alemão é uma aliança de confiança. Desejo que voltemos ao espírito de cooperação que existiu entre François Mitterrand e Helmut Kohl. Não se participa de um Conselho Europeu sem uma posição comum. Isso não significa que concordemos em tudo, e sim que não queremos perder tempo pedindo que os outros sejam os árbitros de nossas divergências. Caso contrário, a Europa gagueja, e a chave para voltar a avançar é uma Europa que protege.

P. Por quê?

R. Porque em todas as nossas sociedades as classes médias começaram a duvidar. Têm a impressão de que a Europa é feita sem elas. Esta Europa reduzida a um mínimo. Temos de criar uma Europa que proteja, dotando-nos de uma verdadeira política de defesa e segurança comum. É preciso ser mais eficaz contra as grandes migrações, reformando profundamente o sistema de proteção de nossas fronteiras, a política migratória e o direito de asilo. O sistema atual faz com que alguns suportem todo o peso, não podendo resistir às próximas ondas migratórias. Acredito em uma Europa que adquira meios para proteger suas fronteiras externas, que garanta sua segurança por meio da cooperação policial e jurídica em sua luta contra o terrorismo e que estabeleça uma organização comum em matéria de asilo e de imigração, uma Europa que proteja contra os desequilíbrios da globalização. É a primeira etapa. Não pode haver um aprofundamento institucional enquanto não tenhamos restaurado a coesão da Europa. Se quisermos avançar para a próxima etapa, deve haver uma maior integração na zona euro. Portanto, defendo com vigor a ideia de um orçamento da zona do euro, dotado de um sistema de governo democrático. É a única maneira de recriar um movimento de convergência entre nossas economias e nossos países. Se não o fizermos, enfraqueceremos a zona do euro. Temos de ser capazes de articular o pilar da responsabilidade e o da solidariedade. Minha impressão é que a Alemanha não irá bloqueá-los.

“A Europa não é um supermercado. A Europa é um destino comum”

P. Acha que os alemães também estão dispostos a mudar?

R. Estou convencido. Em matéria de segurança e defesa, a chanceler alemã mudou as coisas profundamente. Revisou os tabus herdados da Segunda Guerra Mundial. Nos próximos anos, a Alemanha vai gastar em defesa mais do que a França. Quem teria acreditado? Mas a Alemanha está bem consciente dos limites de uma ação que não seja completamente europeia, sobretudo no que se refere à intervenção militar. Sabe que nosso destino é de novo trágico. Precisa da França para se proteger, para proteger a Europa e garantir nossa segurança comum. Acredito, por outro lado, que as dinâmicas que evoco afetam também a sociedade alemã. Nosso dever como dirigentes é extrair uma lição disso. Os egoísmos nacionais são venenos lentos que mantêm o enfraquecimento de nossas democracias e nossa incapacidade coletiva de aceitar nosso desafio histórico. Sei que a chanceler está ciente disso.

P. Hoje a Europa está dispersa. A divisão entre Leste e Oeste reapareceu. No Leste, vários países elegeram regimes autoritários. Como se pode administrar uma Europa tão dividida?

R. Não acredito nesse conflito entre o Leste e o Oeste da Europa. Há tensões porque nossas imagens simbólicas e nossa história não são as mesmas. Não esquecerei nunca esta frase de Bronislaw Geremek, com a qual concordei há 20 anos no momento da expansão europeia: “A Europa não mede tudo o que nos deve”. Para sua geração, ligada à Europa do Iluminismo, a Europa Ocidental tinha cometido uma traição ao deixar que o muro fosse erguido e o continente se dividisse. Quando hoje escuto alguns dirigentes europeus, me parece que cometem uma dupla traição. Decidem abandonar os princípios, dar as costas à Europa, ter um posicionamento cínico da União que serviria para gastar os créditos sem respeitar os valores. A Europa não é um supermercado. A Europa é um destino comum. Debilita-se quando permite que seus princípios sejam rechaçados. Os países da Europa que não respeitam as regras têm de arcar com todas as consequências políticas. E não é só um debate Leste-Oeste. Eu falarei com todo o mundo, e com respeito, mas não transigirei sobre os princípios da Europa, sobre a solidariedade e os valores democráticos. Se a Europa aceita isso, é porque é fraca e já desapareceu. Não é minha escolha.

Macron caminha para o Museu do Louvre no dia de sua eleição presidencial.
Macron caminha para o Museu do Louvre no dia de sua eleição presidencial.REUTERS

P. O diálogo, mas sem sanções?

R. O diálogo, mas deve ser seguido de decisões concretas. Desejo que todo o mundo tenha em mente a responsabilidade histórica, que é a responsabilidade dos europeus. Devemos promover uma Europa que siga na direção de um melhor bem-estar econômico e social. O objetivo de uma Europa que protege também deve prevalecer no âmbito econômico e social. Ao raciocinar como se está fazendo sobre os trabalhadores deslocados [trabalhadores enviados por sua empresa a outro país da UE] há anos, a Europa é entendida ao contrário. Não se deve conduzir ao erro. Os grandes defensores desta Europa ultraliberal e desequilibrada, no Reino Unido, se lançaram contra ela. Em torno do que girava o Brexit? Em torno dos trabalhadores da Europa do Leste que vinham ocupar os postos de trabalho britânicos. Os defensores da Europa perderam porque as classes médias britânicas disseram basta! O impulso dos extremismos se alimenta desses desequilíbrios. Os trabalhadores deslocados conduzem a situações ridículas. Acha que posso explicar às classes médias francesas que as empresas são fechadas na França para irem para a Polônia porque é mais barato e que na França nossas empresas da construção contratam poloneses porque lhes pagam menos? Este sistema não funciona.

P. Qual é o modelo para a futura relação entre o Reino Unido e a União Europeia? A porta para uma marcha-à-ré está aberta?

A chave para voltar a arrancar é uma Europa que proteja

R. A porta está aberta até o momento em que for cruzada. Não cabe a mim dizer que está fechada. Mas a partir do momento em que as coisas se iniciam, com um calendário e um objetivo, é muito difícil voltar atrás. Não temos que nos enganar. Desejo que o diálogo que acaba de começar esteja perfeitamente coordenado em escala europeia. Não quero conversações bilaterais porque o que se deve preservar é o interesse da UE no curto, médio e longo prazo. Em troca, a França tem a intenção de manter e reforçar sua estreita relação em matéria de defesa e segurança com o Reino Unido. O Tratado de Lancaster House continua sendo o marco desta cooperação. Também vamos cooperar mais em matéria de segurança e de luta contra o terrorismo. Já estabelecemos um plano de ação comum em matéria de luta contra a radicalização na Internet porque nossos destinos estão unidos: as redes terroristas não consideram as fronteiras da Europa. E, por último, desejo que nossa cooperação progrida em matéria de imigração. É preciso evitar a todo custo que sejam criados novos abcessos de fixação, como os campos de imigrantes. Nossas relações vão ser regidas pelo pragmatismo.

P. É preciso voltar a pôr sobre a mesa o Espaço Schengen? Os países que rejeitam os imigrantes devem ser obrigados a aceitá-los?

R. Gosto do Espaço Schengen que permite a livre circulação de pessoas no seio da União Europeia, e que é um dos elementos constituintes de nossa cidadania europeia. Se queremos garantir essa livre circulação, é preciso reforçar os controles nas fronteiras externas da UE. Quero que dotemos rapidamente a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira de todos os meios necessários, especialmente para abordar a crise nessas fronteiras. Em seguida, está a questão dos refugiados. Os refugiados são pessoas que solicitam asilo em nosso país. Falamos de homens e de mulheres cuja vida corre perigo em seus países e que a arriscam para vir até nós, que fogem de países em guerra. Devemos a eles hospitalidade e humanidade. O problema é que em numerosos países, entre os quais se encontra a França, a tramitação do pedido de asilo leva tempo demais, entre a apresentação, o registro, a instrução dos processos, sem falar dos prazos que fazem parte da complexidade administrativa e os recursos perante as diferentes jurisdições. Todos esses procedimentos podem durar até dois anos. Pois bem, durante esse período não se pode viver de modo transitório em um país. A pessoa se instala, cria vínculos familiares... Portanto, vemos que o sistema atual já não é satisfatório diante da pressão migratória. Por isso, pedi uma profunda reforma do sistema de asilo na França, para descentralizá-lo e para acelerar consideravelmente os prazos da tramitação dos pedidos de asilo. O objetivo é reduzir esses prazos médios pela metade, para que passem a ser de seis meses em todos os procedimentos. Depois vêm os imigrantes que não solicitam asilo e que, portanto, não têm intenção de se estabelecer na França, e cuja situação tem de ser solucionada de acordo com nosso direito, com humanidade e no âmbito de uma maior cooperação internacional. Será preciso garantir que sejam reconduzidos eficazmente à fronteira e que trabalhemos estreitamente com os países de origem dessas pessoas e com os países de trânsito, e lutar de modo mais eficiente contra as redes mafiosas que exploram o desamparo humano. Em todas essas questões sou a favor de reformas profundas que permitam ter uma mesma filosofia europeia. É preciso solucionar sobretudo a situação que observamos dos “dublines”, essas pessoas que passam de um país a outro esperando, por fim, obter asilo.

P. Depois do Brexit e da eleição de Trump, sua eleição representa um freio para os populismos na Europa?

R. Desconfio do termo populismo porque tem vários significados. Muitos, tanto de esquerda como de direita, me disseram que eu era populista. Quando os partidos estão cansados, se surpreendem que possamos falar ao povo. Se isso é ser populista, não é algo ruim. Não acredito na demagogia, que consiste em adular um povo para lhe dizer o que espera ouvir, para falar-lhe de seus medos. Não tenho a arrogância de pensar que minha eleição representa um freio. Os franceses sempre foram assim: no momento em que não se espera, ocorre um sobressalto. A França não é um país que se reforma, é um país que se transforma, um país de revolução. Portanto, enquanto for possível não reformar, os franceses não o fazem. Aqui, viram que estavam à beira do precipício e reagiram. Minha eleição e também a maioria obtida na Assembleia não representa um freio: são um início exigente. O início de um renascimento francês, e espero que europeu. Um renascimento que permitirá modificar os grandes equilíbrios nacionais, europeus e internacionais, encontrar uma ambição e uma capacidade de olhar as coisas de frente, não para utilizar os temores, e sim para transformá-los em energia, porque os temores existem e, portanto, o que divide as sociedades continua existindo. Não há uma receita milagrosa, é uma luta diária. Tenho apostado na inteligência dos franceses e das francesas. Não os bajulei; respeitei a sua inteligência. O que esgota as democracias são os responsáveis políticos que pensam que seus cidadãos são idiotas, utilizando com demagogia os seus medos e contrariedades, apoiando-se em seus reflexos. A crise do imaginário ocidental é um imenso desafio e não será alterada por uma pessoa. Mas desejo voltar a retomar o eixo da história e recuperar a energia do povo europeu, para conter o auge dos extremismos e da demagogia. Porque essa é a luta da civilização.

P. Como se pode abordar o risco que Donald Trump representa para a estabilidade europeia?

R. Em primeiro lugar, Donald Trump foi efeito pelo povo dos Estados Unidos. O problema é que ainda não elaborou o marco conceitual de sua política internacional. Portanto, sua política pode ser imprevisível – e para o mundo é uma fonte de inquietude. Quanto à luta contra o terrorismo, [Trump] tem a mesma vontade que eu de ser eficaz. Não compartilho algumas de suas decisões, sobretudo com relação ao clima, mas espero que possamos fazer com que os EUA se reincorporem ao Acordo de Paris. Estendo a mão a Donald Trump. E desejo que ele mude de opinião, pois tudo está relacionado. Não se pode querer lutar de maneira eficaz contra o terrorismo sem se comprometer a favor do clima.

Imagem da entrevista do presidente da França, Emmanuel Macron.
Imagem da entrevista do presidente da França, Emmanuel Macron.JEAN-CHRISTOPHE MARMARA

P. Se a linha vermelha sobre o uso de armas químicas for desrespeitada na Síria, a França estará disposta a agir sozinha? Pode fazer isso?

R. Sim. Uma vez que as linhas vermelhas são estabelecidas, se você não sabe fazê-las respeitar é porque decidiu ser fraco. Não é minha opção. Se ficar determinado que se utilizaram armas químicas no terreno, e se soubermos traçar sua procedência, então a França realizará ataques para destruir os armazéns de armas químicas identificados.

P. Mas é necessária uma cooperação com outros países da coalizão.

R. Sim, mas o que foi que emperrou as coisas em 2013? Os EUA definiram linhas vermelhas, mas no final decidiram não intervir. O que foi que debilitou a França? Definir politicamente uma linha vermelha sem gerar consequências. E o que liberou, de repente, Vladimir Putin em outros teatros de operações? O fato de constatar que diante dele havia linhas vermelhas que ninguém fazia respeitar. Eu respeito Vladimir Putin. Tive com ele uma conversa construtiva. Temos verdadeiros desacordos, em particular sobre a Ucrânia, mas ele viu qual é a minha posição. Falei longamente com ele, cara a cara, dos temas internacionais, assim como da defesa das ONGs e das liberdades em seu país. O que eu disse na entrevista coletiva não era novidade [para ele]. Essa é a minha linha: dizer as coisas com muita firmeza aos meus interlocutores, mas dizê-las, primeiro, cara a cara. Hoje tenho a questão da Ucrânia com Vladimir Putin. E a da Síria. Nesse tema, minha convicção profunda é que precisamos de um mapa diplomático e político. Não resolveremos a questão só com a força militar. É o erro que temos cometido de forma coletiva. O verdadeiro aggiornamento [atualização] nesse assunto é que não declarei que a destituição de Bashar al-Assad seja a condição prévia de tudo. Porque ninguém me apresentou ao seu sucessor legítimo. Minhas linhas são claras. Primeiro: a luta absoluta contra os grupos terroristas. São eles os nossos inimigos. É nessa região que se fomentaram os atentados terroristas e se nutre um dos focos do terrorismo islamista. Precisamos de uma cooperação de todos para erradicá-los, em especial da Rússia. Segundo: a estabilidade da Síria, pois não quero um Estado fracassado. Comigo terminará uma forma de neoconservadorismo importada na França há 10 anos. Não se faz democracia do exterior, sem ter em conta os povos. A França não participou da Guerra do Iraque, e teve razão. E errou ao fazer a guerra desta forma na Líbia.

P. Qual foi o resultado dessas intervenções?

Não transigirei sobre os princípios da Europa, sobre a solidariedade e os valores democráticos

R. Estados fracassados onde prosperam grupos terroristas. Não quero algo assim na Síria. Terceiro: tenho duas linhas vermelhas: as armas químicas e o acesso humanitário. Disse isso muito claramente a Vladimir Putin. Serei intransigente nesses temas. De modo que o uso de armas químicas provocará réplicas, inclusive da França sozinha. Por outro lado, a França se alinhará nesse aspecto perfeitamente com os EUA. Quarto: quero uma estabilidade síria no médio prazo. Isso significa o respeito pelas minorias. É preciso encontrar vias e meios para uma iniciativa diplomática que faça respeitar esses quatro princípios.

P. Enquanto o Estado Islâmico (EI) perde território na Síria e no Iraque, um terrorismo de baixo custo desafia nossas democracias. Como encontrar o equilíbrio entre as leis de exceção e a necessidade de proteger as liberdades?

R. Falemos primeiro de estado de emergência [urgência, em francês] na França. O estado de emergência estava destinado a responder a um perigo iminente, provocado por ataques graves à ordem pública. Mas o fato é que a ameaça é duradoura. Portanto, é preciso se organizar na duração. Prolongarei o estado de emergência até 1.o de novembro, o tempo justo e necessário para permitir que o Parlamento adote todas as medidas indispensáveis para a proteção dos franceses. Na quinta-feira, um texto será apresentado no Conselho de Ministros. Qual é o seu espírito? Levará em conta todas as formas de ameaças e atos de indivíduos isolados que pudemos constatar recentemente. Prevemos procedimentos específicos para lutar contra esse terrorismo islamista. Não se trata, de maneira alguma, do enfraquecimento do Estado de direito, nem da importação do estado de emergência ao Estado de direito. É preciso construir os instrumentos para lutar contra esse novo risco, sob controle administrativo ou judicial. Precisamos de respostas inéditas e próprias da luta contra esse terrorismo islamista. É o que nossa sociedade necessita para sair do estado de emergência permanente. Depois disso, é preciso reforçar a coordenação dos nossos serviços como um todo ante a ameaça terrorista. Neste marco, desejo implantar a Coordenação Nacional de Investigação e Luta contra o Terrorismo, criando, em seu interior, o Centro Nacional Antiterrorismo. Isso significa, finalmente, ter uma política internacional coerente e saber falar com todas as partes. Meu princípio diplomático é esse. Falei cinco vezes com o presidente [turco] Erdogan desde que estou aqui. Duas com o presidente iraniano Rohani. Recebi Vladimir Putin. A França não pode escolher um campo em detrimento do outro. Essa é a sua força e sua história diplomática. Devemos reencontrar a coerência e a força de uma política internacional que nos devolva o crédito com os demais. Trata-se também de ter uma firme política de segurança no plano internacional, construindo coalizões mais eficazes contra o terrorismo. Por fim, precisamos de uma política de civilização, que consiste em erradicar os fundamentos desse terrorismo.

P. O senhor fala de um diálogo franco com Vladimir Putin. Mas ele não cede. Ainda há combates na bacia do Donetsk (leste da Ucrânia), a Crimeia está ocupada e o formato de diálogo do Quarteto da Normandia está esgotado.

R. Quando falo de um diálogo franco com Vladimir Putin, não digo que seja milagroso. O que motiva Vladimir Putin? Restaurar um imaginário russo poderoso para controlar seu país. A Rússia também é vítima do terrorismo. Em suas fronteiras, há rebeliões e identidades religiosas violentas que ameaçam o país. Esse é o seu fio condutor, inclusive na Síria. Não acho que haja uma amizade indefectível com Bashar al-Assad. [Putin] tem duas obsessões: combater o terrorismo e evitar um estado fracassado. Por isso, aparecem convergências na Síria. Durante muito tempo, ficamos bloqueados na pessoa de Bashar al-Assad. Mas Bashar não é nosso inimigo: é o inimigo do povo sírio. O objetivo de Vladimir Putin é restaurar a Grande Rússia porque, segundo ele, essa é a condição para a sobrevivência de seu país. Procura nos enfraquecer ou que desapareçamos? Não acredito. Vladimir Putin tem sua leitura do mundo. Pensa que a Síria é uma questão de vizinhança fundamental. O que podemos fazer? Conseguir trabalhar juntos na Síria para lutar contra o terrorismo e chegar a uma verdadeira saída para a crise. Creio que seja possível. Continuarei sendo muito exigente em matéria de liberdades individuais e direitos fundamentais. Finalmente, temos a questão da Ucrânia, para a qual esperarei a primeira reunião do formato Normandia para responder com maior precisão. O certo é que temos um dever: a proteção da Europa e de seus aliados na região. Nesse ponto, não devemos ceder em nada.

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