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“Aonde você vai, Casemiro?” A história do segredo mais bem guardado do Real Madrid

“Me dê cinco jogos, e eu mostrarei que posso ser titular”, disse o atleta em 2013, para surpresa da comissão técnica

Manuel Jabois
Casemiro comemora seu gol.
Casemiro comemora seu gol.JAVIER SORIANO (AFP)

Quando finalmente se pôs a falar sobre o que mais o atormentava intimamente desde pequeno, Casemiro disse à mãe, Magda, que quando ela o levava para jogar ele se perguntava por que o pai não estava ali. O fato é que o pai o abandonara quando ele tinha três anos, e Casemiro cresceu com a mãe e dois irmãos pequenos no bairro mais pobre de São José dos Campos (SP). Não cabiam todos em casa: de noite, o menino ia para a casa da tia ou da avó. Por isso, a primeira coisa de que ele se lembra como jogador profissional é de uma moradia: a do centro de treinamento do São Paulo, seu primeiro quarto.

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Com cinco anos de idade, ele já estava na frente da casa quando a mãe saía para trabalhar. Com 14, quando se separou da família pela primeira vez, contraiu hepatite, em São Paulo, passou três meses internado, com filho e mãe chorando e rezando, separados por cem quilômetros. E aos 18, quando estreou no estádio do Morumbi, fez uma coisa que lhe foi muito útil, mais tarde, em Madri: perdeu o rumo. Deslumbrou-se com o dinheiro e a fama, comprou carros e saiu muito na noite. Em um prodígio atlético como era, seu jogo despencou. Um técnico, na época, resumiu a situação ao portal UOL com a seguinte expressão: “Ele perdeu o foco”. E aprendeu a lição.

No vestiário do Real Madrid, Casemiro é chamado de Case, mas, quando é preciso falar com ele a sério, os companheiros o chamam de Casemito. Seu nome verdadeiro é Carlos Henrique Casimiro. Começou jogando como Casimiro, mas um dia, no Brasil, estamparam seu nome na camisa equivocadamente, e ele entrou em campo como “Casemiro”. E fez uma grande partida: sua atuação foi tão excepcional que ele não ousou mexer em nada e pediu para continuar a jogar com o novo nome. Assim, aquele que tem a responsabilidade de apontar e corrigir os erros táticos de seus companheiros em campo traz em sua própria camisa um erro tipográfico, com um nome novo que assumiu como seu.

“Sempre teve um problema, que era ser Mauro Silva, mas só ele sabia disso”, diz José Ángel Sánchez, diretor geral do clube. A confiança que tinha em si mesmo aos 21 anos, já com um importante acúmulo de experiência de vida, provocou muitas risadas no Madrid. “Me dê cinco jogos e mostrarei que posso ser titular”, disse em 2013, para surpresa da comissão técnica. Esses jogos não vieram, e ele acabou cedido para o Porto, mas deixou a sua marca no Real: salvou o time de um desastre em Dortmund. “Aquele jogo mudou a minha vida”, admitiu, em declaração ao jornal Marca.

Antes de cada jogo, o número 14 do Real Madrid recebe em sua casa um de seus melhores amigos e conselheiro, Óscar Ribot. Na quinta-feira passada, Ribot esteve com ele e constatou que o atleta estampava a enorme confiança de sempre. “Vai ser um jogo muito difícil, muito duro”, disse. “Mas nós vamos ganhar”. Na ocasião, ele disse também algo não muito original, mas que revela, sim, uma forte autoestima, sendo o volante puro que ele é: “acho que vou marcar um gol”. Bale disse a mesma coisa no hotel em Cardiff, assim como Cristiano Ronaldo; na verdade, quase todos têm certeza de que a final das Champions será sua. À véspera do jogo, Pedja Mijatovic lembrava isso: ele próprio prenunciara o seu gol em Amsterdã. Mas, Casemiro?

Sánchez recorda que se ouviu das tribunas, com a bola livre depois do rebote do chute de Kroos, um grito muito comum entre os madridistas: “Aonde você vai, Casemiro?”. Uma bola em terra de ninguém, em disputa. E foi assim que Casemiro marcou um dos gols do ano na Champions contra o Nápoles, e foi assim que fez o segundo gol do time nesta final. Em sua casa, 48 horas antes, ele pensava em como o comemoraria: seria um gesto de fé madridista, beijando o escudo, apontando para a própria camisa. Mas uma coisa é estar em casa, outra é o campo: abriu os braços, fez o sinal da cruz e acabou ajoelhado.

Na véspera, uma coisa o deixara preocupado: quando questionado sobre Bale e sobre Isco, Allegri acabou falando sobre Casemiro. O mesmo tinha sido feito pelo Cholo nas semifinais. Isso o fez se sentir importante, mas também significou uma pressão a mais em cima dele. Trata-se de um desarmador de jogadas, mas também de um jogador tático. Sua principal preocupação era o lado esquerdo: ali havia Daniel Alves e Dybala. Duas armas perigosas, sendo um canhoto e um destro, contra o lateral mais ofensivo do mundo, Marcelo. Assim, Casemiro e Sergio Ramos tinham a missão de vigiar a todo custo o seu lado esquerdo, onde atuaria a dupla lateral de mais qualidade da Juventus.

E foi justamente por ali que ocorreu um momento especialmente perigoso para o Real Madrid: Dybala atraiu Casemiro para a lateral, e de repente o argentino se viu cercado pelo 14, por Marcelo e por Ramos, que chegou para ajudar. O gênio da Juve se livrou dos três e ficou sozinho para avançar na área. Mas alguém apareceu para salvar o Madrid: Dani Alves. Ele se desentendeu com Dybala e Marcelo aproveitou para lhes roubar a bola, que chegou a Casemiro e depois a Modric. O croata a passou à frente para Kroos, que fugiu da marcação e armou sozinho o contra-ataque. A bola passou então por Benzema, Cristiano Ronaldo e Carvajal, antes de CR marcar o primeiro gol do jogo.

Por acaso Casemiro sabia que circulavam entre os torcedores vários memes sobre um possível cartão amarelo logo nos primeiros minutos? Sua posição delicada no campo era uma das preocupações do madridismo. Casemiro pega forte, às vezes com violência: é sempre firme, um jogador de contato. Seus próximos preferem falar em “intensidade”. Quando há algum risco, ele costuma entrar forte e logo se distanciar. Faz a falta e cai fora. Não fica rondando a cena do crime, tampouco reclama com o juiz, a não ser quando considera injusta a marcação. Poderia ter recebido um cartão rapidamente em Cardiff, mas quando o juiz chegou perto do jogador da Juve, Casemiro já estava longe, do outro lado do campo. O lance não tinha sido tão grave a ponto de se dever ir atrás dele. No Real Madrid, afirmam que o jogo foi ganho por dois motivos: o gol da Juve lembrou ao time que nenhuma final da Champions é fácil, e depois do intervalo a equipe voltou à toda. Pelo preparo físico dos jogadores, o mesmo que liquidou com o Atlético de Madrid em Lisboa e segurou a equipe depois do empate de Milão. E porque Kroos e Modric começam a apertar claramente pela esquerda. Foi por ali que conseguiram avançar pelas costas de Daniel Alves nos primeiros minutos do segundo tempo: primeiro com Cristiano Ronaldo e depois com Isco. Finalmente, quem se soltou nessa parte do campo foi Benzema. O francês passou para Kroos e o chute do alemão foi rebatido pela defesa da Juve, ficando a bola em uma área livre. Foi ali que Casemiro apareceu, cheio de energia.

Não comemorou o gol de Asensio. Lançou-se ao gramado de bruços. Pôs um joelho no chão e rezou olhando para céu. Um ano antes, em Milão, enquanto todos os seus companheiros acompanham os pênaltis, ele estava ajoelhado de costas para o gol. Diante de qualquer problema, sua mãe – presente na final com toda a família, as mesmas pessoas que acolhiam o pequeno Casemiro porque não havia espaço na casa dele – lhe pedia que rezasse, pois tinha certeza de que Deus encontraria uma forma de solucioná-lo. Em Cardiff, enquanto muitos se perguntavam “aonde você vai?”, Deus não resolveu nada: foi Casemiro, sim, que o fez.

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