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Coluna
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A morte, minha vizinha

Meu jardim agradava aos olhos e aos narizes de todos aqueles que tive o privilégio de receber em visitas

Meryl Streep e Alec Baldwin em cena do filme 'Simplesmente Complicado'.
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Embora na minha infância morássemos em um cortiço na Vila Teresa, em Cataguases, nem por isso minha mãe deixou de cultivar um minúsculo jardim no quadrado existente entre a parede da cozinha e o muro que delimitava nosso lugar no mundo. Depois, quando mudamos para a casa própria, no Paraíso, com amplo quintal onde cultivávamos pés de frutas, ela estendeu o domínio das flores e das folhagens: não havia espaço vazio que não fosse tingido com rosas, margaridas, lírios, amores-perfeitos, antúrios, copos-de-leite, crisântemos, gardênias, girassóis, calêndulas, gerânios, jasmins.

De minha mãe não herdei joias, imóveis ou dinheiro, mas tudo o mais, inclusive o gosto por bichos e plantas. Desde que mudei para o apartamento onde hoje moro, há 15 anos, construí, pouco a pouco, um jardim na lateral do corredor externo – afora os outros inúmeros vasos que mantenho dentro de casa, entremeando as estantes abarrotadas de livros. Colorido e cheiroso, agradava aos olhos e aos narizes de todos aqueles que tive o privilégio de receber em visitas, curtas ou longas, sempre prazenteiras.

Na primeira semana deste maio infindo, o condomínio recebeu um comunicado do Corpo de Bombeiros anunciando que teríamos que liberar a área do corredor por razões de segurança, dando-nos um curtíssimo prazo para efetuar a desocupação. Como iria me ausentar por uns dias, viajando para palestras e conferências, rapidamente espalhei as plantas pelos cômodos para, na volta, pensar em uma solução para o problema – o “problema” é que elas não cabem todas decentemente dentro de casa. Não preciso dizer que a tristeza empoleirou em minhas costas, afinal o jardim evocava a memória de minha mãe, nunca suficientemente pranteada.

No corredor adjacente, minha vizinha, V., também cultivava um jardim. Por exigência da minha atividade, pouco permaneço em São Paulo, e por isso nosso convívio esparso. Mas, quando nos encontrávamos, trocávamos ós de admiração pelas flores e folhagens um do outro. Há tempos, no entanto, não a via, pois ela adoeceu e começou a passar longas temporadas internada em hospitais. G., a diarista, cuidava do jardim e sempre me informava sobre o estado de V., que parecia estável, mas incontornável.

No dia em que recebemos o comunicado do Corpo de Bombeiros, encontrei com G. e disse que lamentava profundamente ter que me desfazer do jardim. Ela me olhou e disse, Pois é, nem sei como falar sobre isso com a dona V. Quando vou visitá-la, a primeira coisa que ela faz é perguntar pelas plantas. Elas são tudo para a dona V. Nos despedimos, fiz a mala, viajei para Poços de Caldas, Juiz de Fora, Rio de Janeiro e Niterói, terminando a jornada em Cataguases, onde acompanhei Michael Kegler, tradutor alemão que tornou-se grande amigo, em visita de reconhecimento do palco privilegiado de minhas histórias. De regresso, ao entrar no prédio, o zelador me avisou, pesaroso, que V. havia morrido no dia mesmo em que terminava o prazo para a liberação dos corredores.

Envelheço e cada vez mais sinto imensa necessidade de arrumar uma maneira de manter plantas, bichos e amigos vivos e próximos... O tempo foge...

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