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Nuno Ramos: “Quando vi o Telê Santana treinar, lembrei do Antonio Candido”

O artista fala sobre as diferentes dimensões do crítico literário que morreu nesta sexta

Nuno Ramos em seu ateliê
Nuno Ramos em seu ateliêEduardo Ortega

A conversa, se a vida obedecesse a programações, era para ter seu pontapé pelo futebol, 7 x 1, Neymar, Tite... Daí, a ideia era tentar escorregar despretensiosamente, como em um ensaio livre, para literatura, o papel do artista, artes, música. Para terminar, as coisas iriam para diferenças geracionais, divisões políticas, democracia, Justiça, violência. Em suma, Brasil. Não aconteceu. O assunto da entrevista com o artista plástico Nuno Ramos ficou sendo, meio de improviso, Antonio Candido, o crítico literário, professor, e um dos principais pensadores do país, que morreu na madrugada desta sexta-feira, 12. Os temas brasileiros, como não poderia deixar de ser, contudo, rodearam o breve bate-papo o tempo todo.

Sentado em uma poltrona amarfanhada, toda suja de tinta, em cima de um chão igualmente sujo de tinta, Nuno Ramos, que também escreve ensaios em que caminha pelos mais variados temas, não decepcionou e logo nas primeiras frases traçou uma analogia futebolística. “Eu me lembro quando o Telê Santana era técnico do Palmeiras e visivelmente ensinou um ponta-esquerda – acho que chamava Baroninho – a jogar. E eu pensava: esse Telê é o Antonio Candido. Ele pegava um cara que não é um craque, achava o melhor lugar para ele jogar e o ajudava a melhorar”, diz.

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Pergunta. Como assim era igual o Telê Santana?

Resposta. É, porque, assim como o Telê, ele era esse cara que ensinava o jogador mediano: “Você faz assim, você bate falta desse jeito, você abre o jogo por lá”. E aquilo começava a render. O Antonio Candido também teve uma atração e uma atenção pela obra média, por aquilo que não é uma obra prima. Essa, eu acho, era a intuição de vida dele não apenas na literatura. E isso era um negócio muito bonito. Era a intenção de um resgate. Um pouco a história do perdedor, tem algo disso. Acho que ele queria fazer essa história, trazer essas vozes que estavam indo. A memória, nesse sentido, talvez fosse, de fato, uma faculdade essencial a ele.

P. O Antonio Candido gostava muito do João Antônio, um autor que tinha os malandros, as prostitutas, os mendigos, o trabalhador comum como seu assunto central...

R. É. Eu lembro muito bem de um texto que ele fez para a revista Argumento, contrária a ditadura... Eu era muito menino, mas o texto era sobre aquele filme italiano Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita. Era o seguinte. O operário que vai na casa do patrão quer ser chamado de “hidráulico” e o dono da casa, que contratou o serviço, fica falando: “que hidráulico que nada, você é encanador”. E o ensaio do Antonio Candido fala sobre a coisa democrática e bonita que há no cara se chamar do que quiser. Eu identifico isso nele. Ele sempre esteve com o hidráulico, ele quis fazer com que o homem comum ganhasse essa liberdade de se chamar do que quisesse. Ele entendeu a dimensão estética que é para aquele cara ser chamado de hidráulico e não encanador. Como crítico, ele pegou a literatura e transformou em um fato social.

P. E foi criticado por isso também?

R. É. O perigo disso é diminuir a dimensão da máquina anárquica e doida que a literatura tem e que ninguém sabe de onde vem e que, com certeza, não é o quadro formativo que explica. O Machado de Assis, por exemplo: não era pra haver um Machado de Assis. Não há Formação da Literatura brasileira que explique haver um negócio desse tamanho aqui, no Rio de Janeiro, em 1883. Não faz sentido. O fato de não fazer sentido é algo para além do que o Antonio Candido consegue “concertar”, digamos assim.

O Nuno Ramos, ele próprio, nunca chegou a ser próximo do Antonio Candido, mas, assim como outras centenas de pessoas, que privaram da generosidade do crítico, tem uma história com ele. Seu pai Vitor Ramos, professor da Universidade de São Paulo, foi amigo de Candido e morreu de um AVC que teve enquanto conversava com o crítico ao telefone. “Era a véspera do 25 de Abril [Revolução dos Cravos, quando o ditador António Salazar foi derrubado] e, meu pai, como exilado político de Portugal estava muito emocionado. Eu cheguei em casa depois de um jogo de handebol, tinha 14 anos, entrei no banho e ele teve o derrame enquanto falava com o Candido no telefone”, conta em seu ateliê, no Cambuci, zona leste de São Paulo.

"Ele sempre esteve com o hidráulico, ele quis fazer com que o homem comum ganhasse essa liberdade de se chamar do que quisesse. Ele entendeu a dimensão estética que é para aquele cara ser chamado de hidráulico e não encanador"

P. E como você descreveria o trabalho dele como crítico?

R. Ele teve papel fundamental na recepção imediata de Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos. Claro que o Sergio Buarque de Holanda, por exemplo, também fez crítica, mas o Antonio Candido era um crítico único. A memória era muito importante para ele, mas ele também tinha a vocação muito forte para o presente, porque, no fundo, ele quer receber o presente incluindo o que vem de trás, como se o presente fosse uma espécie de palco onde as coisas aparecem novamente. Você isolar da lata de lixo da história, isolar, colocar luz e dizer que determinada coisa é diferente, é uma coisa imensa, era isso que o crítico fazia. Por exemplo, a Clarice [Lispector]? O texto dele de recepção do Perto do Coração Selvagem é lindo. Esse é o livro de estreia dela, ninguém nem sabia quem ela era. Ele conseguiu juntar o contemporâneo com o passado. Acho que ninguém que veio depois dele conseguiu. E o passado como algo de um resgate memorialístico, mesmo que ele não tivesse lá.

P. Para além do crítico, ele era, antes de tudo, professor, não? É o que todos dizem.

R. Ele é o cara antes da profissionalização universitária da geração do Paulo Arantes ou do Roberto Schwarz. Acho, inclusive, que ele não tinha o domínio de conceitos do Roberto Schwarz – não que isso lhe faça falta – mas a visão dele é outra. Um pouco mais amadora. Um pouco mais...

P. Estava pensando nisso. Ele é o professor antes da especialização, nesse sentido, quase ginasial. Alguém que te pega pela mão e conduz.

R. É isso mesmo. Ele é o cara que vai lembrar de alguma coisa e vai te perguntar: “E seu pai? Não me diga! Seu pai é de Poços de Caldas?”. Aí, a partir disso, ele vai mergulhar na memória dele e te traçar uma árvore genealógica de Poços de Caldas. Nesse sentido, é quase como se o esforço crítico, ensaístico, fosse de conexão. Não estou dizendo que ele não tenha proposto conceitos, mas com ele a coisa era um pouco mais borrada. Ele não é mordente, ele vai espalhando. Ele não é o cara do itálico, da nota de rodapé. Eu acho que ele foi um grande justiceiro. Sem mitologia do grande, do que vai, do que morre. Ele fez o jogo aqui embaixo.

P. Faz algumas semanas, uma homenagem na Academia Carioca de Letras à escritora negra e pobre, Carolina de Jesus, virou uma discussão sobre se o livro dela Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada era ou não era literatura. Dá pra imaginar o Antonio Candido puxando esse debate?

R. Não! De jeito nenhum. Não havia a menor chance de ele entrar nisso, nunca diria que não é literatura.

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