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As crianças que denunciavam seus pais à polícia secreta no Leste Europeu

Quase 50 anos de delações deixaram uma ferida profunda e uma herança de suspeitas nas sociedades do bloco comunista

María R. Sahuquillo
Uma mulher consulta um relatório da Securitate romena.
Uma mulher consulta um relatório da Securitate romena.Reuters

A Sra. Balasa queria tirar sua carteira de habilitação. Usaria o documento para fugir de carro de seu vilarejo, Oradea, no noroeste da Romênia, para a França. Foi lá que seu filho mais novo conseguira chegar alguns anos antes, tendo escapado pelo rio Danúbio aferrado a um pneu de caminhão, como se fosse uma boia. Mas a carteira estava demorando para chegar e a Sra. Balasa pediu ajuda a sua vizinha, uma mulher afável e bem conectada. Após fazer suas indagações, a vizinha lhe revelou que o documento nunca chegaria. Aparentemente, a Sra. Balasa tinha sido denunciada por seu genro, um homem com pretensões de ser escritor que queria publicar um de seus manuscritos e necessitava oferecer algo em troca. E isso significou delatar sua sogra. Nem a Sra. Balasa, uma cozinheira, nem seu marido sabiam que o rapaz era informante, um dedo-duro. Mas sim, era. E talvez não fosse o único da família.

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Na Romênia de Nicolae Ceausescu, a polícia secreta – a temida Securitate – tinha 11.000 agentes registrados e cerca de 700.000 informantes, segundo especialistas. Ou seja, um em cada 30 cidadãos. Um cifra oceânica para um país de 22 milhões de almas, que alimentava um clima de temor e paranoia que não se dissipou até hoje, 18 anos depois do julgamento e da execução do ditador e sua mulher, Elena. Até apenas uma década atrás, os estrangeiros residentes no país suspeitavam que tinham seus telefones grampeados, muitas vezes apresentando provas. E em muitas famílias falar dos dedos-duros e dos informantes ainda é um tabu. Apesar de existirem aos montes – por necessidade, chantagem ou, por que não dizer, malícia – ter sido colaborador da Securitate é tremendamente mal visto.

A Romênia do regime do “Gênio dos Cárpatos” e da “Primeira Cientista” poderia se passar por um romance distópico. Mas ainda que o país balcânico seja, de longe, o que mais cultivou essa maneira de viver baseada na informação e na espionagem, todos os países do bloco comunista desenvolveram poderosos serviços secretos. Aparatos e redes complexos que, após a queda da Cortina de Ferro, deixaram uma herança de suspeitas e revelações que respingaram – e ainda respingam – em importantes figuras da vida pública.

Segundo Lavinia Stan, professora da Universidade St Francis Xavier, do Canadá, e especialista em justiça nos antigos países comunistas, na Romênia, vazamentos de arquivos da Securitate marcaram políticos como o ex-presidente Traian Basescu – apesar de sua ficha nunca ter sido encontrada. Os documentos, que começaram a vir a público – e a conta-gotas – em 2001, implicaram esportistas famosos, com o jogador de futebol Gica Popescu (que depois atuou no Barcelona). Na Polônia, os documentos da polícia secreta, a Sluzba Bezpieczenstwa (SB), desmascararam inúmeros membros da Igreja católica – 15% deles colaborou, de padres que revelavam segredos de confessionário a altos cargos eclesiásticos, como o ex-arcebispo de Varsóvia, Stanislaw Wielgus, que renunciou quando seu nome foi revelado. Wielgus explicou, na época, que havia atendido a alguns pedidos da SB com o objetivo de “promover” sua carreira acadêmica.

Na Romênia, sob a ditatura de Ceausescu, um em cada 30 cidadãos foi informante da Securitate em algum momento da vida

Nem todos os países administraram seu passado da mesma maneira. A Alemanha, por exemplo, aplicou uma política de abertura com os arquivos da Stasi, como conta Timothy Garton Ash em seu livro The File, no qual narra, a partir de uma ficha que encontrou com seu nome, como foi espionado na Alemanha Oriental. A maioria dos países do Leste Europeu fundou institutos para estudar os crimes de suas ditaduras. E suas revelações, periódicas, terminaram por implicar de maneira polêmica como informantes algumas personalidades que se tornaram famosas por sua resistência. Como o escritor Milan Kundera. O autor de A Insustentável Leveza do Ser (Companhia das Letras) foi acusado, em 2008, de colaborar com a polícia comunista e de denunciar um estudante que foi preso e acabou por cumprir 22 anos na cadeia. O eterno candidato ao Prêmio Nobel, distanciado totalmente da vida pública, negou a acusação laconicamente.

Ou Lech Walesa, líder do sindicato Solidariedade e um dos heróis da luta contra o comunismo, a quem o Instituto da Memória Nacional da Polônia (IPN) identificou como o informante Bolek. Algo que Walesa negou. Ganhador do Prêmio Nobel da Paz e presidente entre 1990 e 1995, Walesa afirma que as revelações fazem parte de uma campanha para desprestigiar seu legado. Um argumento que ele compartilha com o intelectual Adam Michnik, fundador do jornal Gazeta Wyborcza, que defende que o Governo ultraconservador da aliança Lei e Justiça (PiS) está manipulando a história e fazendo um uso político dos arquivos. Além disso, na Polônia, uma lei impede de exercer cargos públicos alguém que tenha colaborado com as ditaduras.

Na Romênia também existe uma lei semelhante, aponta Daniel Savu, que foi membro do Serviço Romeno de Informação, a agência que substituiu a Securitate. Por isso, antes de qualquer processo eleitoral, todos os candidatos passam por uma verificação. Além disso, qualquer cidadão pode pedir para ver se há uma ficha em seu nome ou no de seus familiares já falecidos. “Aqui surgiram dramas. Pessoas que descobriram que foram espionadas por seus vizinhos ou amigos mais próximos. Gente da mesma família que se delatava entre si”, narra Savu. Como o caso da Sra. Balasa.

Nunca se saberá quantos informantes houve na realidade porque nem todos os arquivos são claros, e alguns usavam vários nomes. Na Romênia, por exemplo, segundo Stan, cada agente secreto da Securitate tinha ordem para manter 50 informantes ativos. Também há casos em que o agente reportou ter recebido informações, mas em seguida mantinha o dinheiro para si próprio. Até mesmo crianças foram recrutadas, sendo ameaçadas ou recebendo ofertas em troca, como por exemplo, uma vaga na universidade. Elas informavam se seus familiares falavam sobre o exílio ou se escutavam emissoras de rádio estrangeiras. Ofereciam dados sobre outros estudantes e amigos.

uma cela da Stasi alemã.
uma cela da Stasi alemã.Reuters

A professora Lavinia Stan também tem uma ficha em seu nome. “Fui colocada sob vigilância nos anos oitenta por escrever alguns comentários críticos em cartas dirigidas a minha família. Era suficientemente jovem e boba para escrever o que não podia dizer em voz alta”, conta. Seu arquivo contém anotações e informação assinada por cerca de 12 informantes. “Isso prova até que ponto a Securitate perdeu o controle da realidade. Seu trabalho era proteger os líderes do regime e prevenir revoltas, não seguir casos como o meu, uma estudante de 20 anos que fazia piadas ruins sobre política”, diz.

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