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As duas Franças, uma rachadura global

Divisão entre leste e oeste, ou cidade e periferia, reproduz o choque do 'Brexit' e da eleição de Trump

M. B.
Um homem passeia em frente a cartazes com propaganda eleitoral na sexta-feira, em Paris.
Um homem passeia em frente a cartazes com propaganda eleitoral na sexta-feira, em Paris.JOEL SAGET (AFP)

Era o último grande comício de Marine Le Pen antes do primeiro turno das eleições francesas, no dia 23 de abril, e as milhares de pessoas que lotavam o recinto em Marselha entoavam o slogan do partido. On est chez nous. "Estamos na nossa casa".

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Um detalhe chamava a atenção. Poucos, entre o público, vinham da própria cidade do sul da França. A maioria era de pequenas localidades e vilas próximas. Paris ficava muito longe: “Paris… Paris… deixem-me em paz com isso de Paris”, brincou Guy Ballester, que havia saído de Nîmes apenas para ver Le Pen. “Que venha ao sul!”

“Antes, o meu bairro em Avignon era como uma vila”, afirmou outro eleitor do Frente Nacional, Guy Ughetto. “Agora já não é assim. As lojas começaram a fechar, o centro se esvaziou, e tenho que fazer compras nos hipermercados nos subúrbios”, disse.

Essa era uma amostra fidedigna da chamada França periférica: a das pequenas cidades desconectadas da globalização, das classes populares de origem europeia, prejudicadas pelo fechamento das velhas fábricas, desconcertadas pelos indícios do fim de um estilo de vida, de uma cultura. Esses eram os seguidores de Le Pen, mas poderiam ter sido militantes do Brexit há um ano no Reino Unido ou eleitores de Donald Trump nos Estados Unidos, em novembro de 2016, em uma cidade de Ohio ou Michigan.

“O grande segredo da mundialização é que existe um preço a pagar, o desaparecimento da classe média ocidental”, afirmou, na Praça da República de Paris, o geógrafo Christophe Guilluy, autor de La France Périphérique (A França Periférica), livro de referência para entender a nova onda populista, cujo modelo se aplicou a outros países desenvolvidos. “É um choque cultural, social e político que tem como consequência a recomposição política dos mais desenvolvidos”. Le Pen e seu rival no segundo turno das eleições, no domingo 7 de maio, Emmanuel Macron, – que não pertencem aos dois partidos hegemônicos da França – entenderam essa tendência melhor do que ninguém. Possivelmente, Trump também.

A ruptura na França – uma cisão dupla: um mapa dividido em dois, leste e oeste; e uma separação entre as grandes cidades e as periferias de pequenos povoados e zonas rurais – é uma fratura transnacional. O contexto francês reproduz o dos Estados Unidos e de outros países onde, no último ano, houve um choque entre as forças populistas e as da ordem liberal.

Nos EUA, a candidata democrata Hillary Clinton teve um resultado melhor que o republicano Donald Trump no interior, mas o derrotou apenas nas cidades. Havia dois mapas: litoral/interior; cidades/periferias. Assim como na França.

Hervé Le Bras se senta em um café no bulevar Montparnasse, em Paris, coloca seu tablet na mesa e começa a mostrar mapas. Le Bras é historiador e demógrafo da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, e autor do livro Malaise dans l'identité (Mal-estar da identidade), lançado em março de 2017. Ao analisar os votos recebidos pelo Frente Nacional (FN) e comparar mapas desde 1984, quando o partido de ultradireita entrou em cena, até hoje, não notou diferenças significativas. “O Grande Nordeste, o Mediterrâneo e o vale do rio Garona são as regiões do FN. E isso praticamente não sofre alterações”, diz.

A rachadura que divide estas duas Franças se deve, segundo Le Bras, a outras mais profundas. O especialista cita uma obra do historiador francês Marc Bloch, Les Caractères originaux de l'histoire rurale française (Os caracteres originais da história rural francesa), de 1931. “Bloch demonstra a mesma divisão. As regiões nas que o FN é forte são aquelas nas quais a população vivia agrupada, e as que não votam no FN são onde a população vivia dispersa”, explica. As primeiras regiões sofreram com maior intensidade o golpe da modernidade, acelerado a partir dos anos setenta: houve uma desarticulação, como constatava o votante do FN de Avignon, inquieto com fechamento de comércios no centro. “Tudo que acontecia antes na vila – o trabalho, o comércio, o lazer – se mudou para fora. Enquanto isso, para as comunidades isoladas, a modernidade foi boa porque puderam se unir para romper esse isolamento”, explica Le Bras. Para elas, a modernidade foi positiva. “Sabemos que estas diferenças remontam, pelo menos, à época de Carlos Magno. Bloch foi um pouco além e disse que datava da época dos dólmenes”, acrescenta.

A novidade com relação ao mapa de 1984 – se comparado ao de Carlos Magno, ou ao dos dólmenes – é que "antes, os votos destinados ao FN eram iguais nas grandes cidades e no campo. E depois começou a cair cada vez mais nas zonas urbanas e a aumentar nas rurais", agrega.

Sobre o mapa estável de Marc Bloch, se sobrepõe o da França periférica e o da França urbana. A excluída da globalização e a integrada às redes mundiais, respectivamente. A que deixou de competir com a Europa e o mundo, e a que está na vanguarda da inovação, mais próxima de Palo Alto (Califórnia) do que de Avignon.

O paradoxo, segundo o geógrafo Guilluy, é que a França urbana, que se considera aberta ao mundo, está cada vez mais afastada de seus concidadãos, da outra França. Mais isolada. “As grandes metrópoles se converteram em cidadelas. Assim como na Idade Média, os burgueses vivem juntos nas cidades. Mas não nos damos conta disso, porque defendemos o discurso da sociedade aberta, e aqueles que o fazem são os mais fechados”, afirma.

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