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Decisão que pode reduzir pena de condenados por crimes de lesa-humanidade preocupa Argentina

Mais de 700 presos seriam beneficiados no país que é exemplo na condenação de repressores da ditadura

Federico Rivas Molina
Os cinco integrantes do Corte Suprema da Argentina, em agosto de 2016.
Os cinco integrantes do Corte Suprema da Argentina, em agosto de 2016.Telam
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A Corte Suprema da Argentina decidiu na terça-feira, em uma sentença dividida, que os militares condenados por crimes de lesa-humanidade podem contar como o dobro os dias que passaram na prisão antes de sua condenação final. A decisão, com base em uma lei revogada em 2001 e conhecida como 2x1, apoiou-se no princípio de aplicação da norma mais benigna, sem levar em conta a dimensão do crime cometido. Enquanto as organizações de Direitos Humanos consideraram a decisão como um retrocesso em um país que foi exemplo mundial na condenação dos repressores da última ditadura militar (1976-1983), o Governo de Mauricio Macri se distanciou com críticas à lei 2x1, mas não à decisão dos juízes. Entre os especialistas, entretanto, não há acordo sobre o alcance da decisão.

A Corte decidiu em um caso pontual, o de Luis Muiña, condenado em 2011 a 13 anos de prisão por sequestrar e torturar cinco trabalhadores do Hospital Posadas, naquele momento, sob o controle do repressor Reynaldo Bignone, último presidente do governo e hoje, com 89 anos, preso por crimes de lesa-humanidade. Três dos cinco membros da Corte entenderam que Muiña devia receber o benefício do 2x1, confirmando assim a liberdade que foi concedida em abril. A grande questão levantada por muitas pessoas na Argentina é se essa decisão da Corte vai colocar nas ruas antes do tempo muitos dos mais de 700 repressores em condições, agora, de receber o benefício do 2x1. Os três especialistas consultados diferem em suas respostas, por isso teremos que esperar para ver as repercussões.

Ricardo Gil Lavedra foi um dos juízes que em 1984 integrou o tribunal que julgou e condenou os líderes do regime militar, o chamado “julgamento das Juntas”. Agora ele diz que é contra a decisão da Corte. “A decisão tem pleno alcance, embora tenha sido uma decisão dividida. Mas as diferenças nos argumentos de uma Corte de cinco membros mostram que é uma questão altamente discutível”, diz Gil Lavedra. “Eu não teria decidido da mesma forma que fez a maioria, sem dúvida. Porque quando as sentenças são ditadas, que é o momento em que se pode pedir o benefício do 2x1, existe a possibilidade de que muitos repressores fiquem livres”. “A Corte aplicou o princípio da lei com pena mais benigna, punição que prevaleceu durante algum tempo, mas devo dizer que no voto minoritário ficou bem indicado que esse princípio cai quando se trata de crime de desaparecimento forçado, que continua sendo cometido enquanto a vítima não aparece”, diz o constitucionalista e advogado de direitos humanos, Eduardo Barcesat. Para Félix Loñ, professor de direito constitucional, a sentença, no entanto, está bem fundamentada: “O estatuto do Tribunal Penal Internacional mantém o benefício da lei mais benigna mesmo para aqueles que violaram os direitos humanos. É apenas um problema de cálculo dos anos de pena, não é um salvo-conduto para violar os direitos humanos”.

O 2x1 teve a intenção de acelerar os prazos de instrução outorgando um benefício aos detidos com prisão preventiva. A partir do segundo ano, para cada dia que o réu passou atrás das grades aguardando a sentença, o juiz devia contar dois, o que na prática diminuía a pena. Foi aprovada em 1994, mas revogada em 2001, quando ficou evidente seu fracasso para reduzir os tempos processuais. O debate decidido na Corte foi que, segundo sua interpretação, esse benefício também deve alcançar aquelescondenados por crimes de lesa-humanidade, algo que nem todos concordam pela gravidade dos atos cometidos.

Como toda decisão de um tribunal de última instância, a sentença da Corte cria uma jurisprudência importante na abordagem de crimes comparáveis. Sua aplicação, no entanto, não é automática, embora não haja unanimidade sobre os tempos necessários. Para Loñ, os juízes podem agora manter em seus argumentos uma posição contrária ao 2x1, mas atentos à sentença da Corte, deverão aplicar o benefício. “Isso não muda tudo o que foi feito em termos de direitos humanos, na verdade consolida, porque ratifica um tratado internacional”, diz. Barcesat entende que os juízes podem se recusar a aplicar o 2x1, embora depois deverão permitir os recursos de apelação apresentados pelos condenados. “Os tribunais intermediários não são obrigados a decidir de acordo com a sentença, mas devem conceder a via recursiva que leva à Corte. E os membros da Corte deverão assumir o custo político de sua decisão”, explica. Mas para Gil Lavedra, o 2x1 nem sequer deve ser aplicado: “Não é preciso fazer isso, porque foi pensado para beneficiar aquele que sofreu a prisão preventiva durante a vigência da lei; e neste caso eles foram presos depois que a lei foi revogada. Chama a atenção, inclusive, que o beneficiário (Muiña) já estava livre”. A Argentina foi e é um exemplo de julgamentos contra crimes de lesa-humanidade, mas as causas ainda são, hoje, quase 35 anos após o retorno à democracia, motivo de controvérsia.

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