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Música
Crítica
Género de opinião que descreve, elogia ou censura, totalmente ou em parte, uma obra cultural ou de entretenimento. Deve sempre ser escrita por um expert na matéria

Father John Misty: América, Ano zero

Músico lança 'Pure Comedy', um disco com cheiro de clássico instantâneo, toda uma epifania de 13 canções sobre o grotesco de nossa época

Fernando Navarro
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Para além das modas, as obras primas são aquelas que retratam seu tempo, descrevendo com precisão uma paisagem emocional determinada, aderindo à psique social, antecipando respostas, lançando mais perguntas e assentando-se no coração mesmo com o passar dos anos. Ainda é cedo para afirmar sem pestanejar, mas Father John Misty acaba de lançar um disco, Pure Comedy, com cheiro de clássico instantâneo, toda uma epifania de 13 canções sobre o grotesco de nossa época, expresso na escolha de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos.

Depois de abandonar a bateria do Fleet Foxes, esse fenômeno em forma de grupo que fascinou a crítica e o público em 2008, Joshua Tillman – seu nome de batismo – não parou de crescer como músico solo. Foi um grande desafio. Podia ter se dado mal, mas Father John Misty demonstrou um arrojo assombroso para traçar seu próprio caminho. Seus dois lançamentos anteriores, os notáveis Fear Fun (2012) e I Love You, Honeybear (2015), já o haviam situado em uma dimensão destacada no panorama do indie-rock norte-americano atual, ao se firmar como uma figura de peso artístico, capaz de mergulhar sentimentalmente com um cuidadoso estilo folkie de aroma crooner. Mas agora este compositor, que utiliza a ironia como uma arma penetrante, adquire aura de titã, apequenando os Fleet Foxes.

Narrado em terceira pessoa, Pure Comedy se torna um relato distópico, no mais puro estilo David Bowie, que documenta o mundo como um lugar caótico, repleto de verdades vazias, medos inventados e interesses corporativos, uma “piada demente”, nas palavras de seu autor. Desde a poderosa ilustração de sua capa, como se essas figurinhas fossem bonecos grotescos saídos da gravura de El Sueño de la Razón Produce Monstruos (o sonho da razão produz monstros) de Goya, Pure Comedy ajuda a explicar por que o grande experimento da América falhou. Embrenha-se nessa nação que deu seu apoio a um presidente bilionário, racista, machista e manipulador, um produto da doentia sociedade do espetáculo, espelho de um país corroído.

Marcado por seu drama esmagador, o álbum abre com uma composição maiúscula em seu crescendo orquestral, que dá título ao disco e parece sair da tela de uma televisão ligada. Como se os extraterrestres vindos da galáxia de Bowie fossem os que observassem, do outro lado, a comédia de nosso planeta. Misty possui a força sentimental de John Lennon, mas se associa mais ao olho clínico e à elegância soberana e sarcástica de Randy Newman. Sua virtude reside na capacidade de transformar seu relato em algo íntimo, como em ‘A Bigger Paper Bag’ com esse ar de Elliott Smith, em ‘When the God of Love Returns There’ll Be Hell to Pay’ com esse outro ar, de Jeff Buckley, e até mesmo quando se apoia na glória na incomensurável ‘Total Entertaiment Forever’, onde se acham os versos definitivos de sua diatribe humana contra o absurdo, impulsionados por metais pletóricos: “Sem deuses que nos mandem / sem drogas que nos aliviem / sem mitos que nos validem / sem amor que nos confunda / sem nada ruim em uma corrida de macacos dementes”.

Father John Misty

Disco: Pure Comedy

Selo: Bella Union / PIAS

Nota: 8,5 numa escala de 10

Uma intimidade que se faz sagrada nas baladas ‘Smoochie’ e, especialmente, ‘Ballad of a Dying Man’ e ‘Leaving L.A.’, um conto dylaniano de mais de 13 minutos sobre a busca de identidade. O perfil do cidadão norte-americano com o qual as pesquisas não contaram na vitória republicana fica ainda mais delineado em ‘The Memo’, no qual enfrenta a atmosfera country com os avanços eletrônicos, exemplo de um mundo de contradições imperantes, em que sobressai sua ironia fina por encontrar sua própria voz como um artista com quase os dois pés nos clássicos, mas sem fomentar nenhum revival.

A viagem se encerra sem perder a ambição, com as melancólicas ‘So I’m Growing Old on Magic Mountain’ e ‘In Twenty Years or So’, que tem esse lampejo à la Talking Heads quando diz que o piano toca ‘This Must Be the Place’, deixando espaço ao milagre, mas em um ambiente lúgubre, como em ruínas.

América, ano zero. Pure Comedy é o primeiro grande disco da era Trump, este tempo jocoso em que nos coube viver, esta pura comédia grotesca. Maldita a graça que tudo tem. Bendito Father John Misty.

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