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Se você vê algo estranho nesta foto o problema está na sua cabeça

Tuiteiro norte-americano tentou usar imagem de mulher de lenço como argumento islamofóbico. Não deu muito certo

Jaime Rubio Hancock
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A fotografia mostra o atendimento a uma vítima do atentado de Londres. Há um pequeno grupo de pessoas à sua volta. Ao lado, passa uma mulher com lenço na cabeça e um celular na mão. Isso é tudo o que sabemos. Mesmo assim, essa mulher foi acusada de indiferença –o que, na verdade, evidencia o olhar tendencioso de quem interpreta a foto dessa maneira.

O responsável pela popularização da imagem com esse ponto de vista foi o tuiteiro norte-americano Texas Lone Star, que se define na rede social como partidário de Donald Trump e patriota. Ele a compartilhou em dois tuítes distintos. Primeiramente, afirmou que a mulher estava andando “tranquilamente, olhando para o seu celular, enquanto ao lado havia um homem agonizando”. Depois, ele fez uma montagem com duas fotos, comparando a atitude “deles” com a “nossa”.

Os dois tuítes foram compartilhados cerca de 3.000 vezes, no total, em menos de um dia. E ele não foi o único. Um outro tuiteiro, que se define como “trumpocrata”, disse, por exemplo, que a imagem o “deixou doente”. Um terceiro chegou a afirmar que a religião da mulher a impedia de ajudar os não-crentes.

A fotografia também chegou à Espanha. Ela foi compartilhada, por exemplo, por um membro do conselho do Espanha 2000 em Alcalá de Henares e pelo diário Mediterráneo Digital, que usou a expressão “uma imagem vale mais que mil palavras”. Para quem não sabe, esse jornal ocupou um lugar de destaque em uma reportagem do EL PAÍS intitulada “A Espanha também tem notícias falsas”.

Lembrando o óbvio

As reações a esses tuítes lembravam o óbvio: não se pode dizer o que uma pessoa está pensando ou sentindo a partir apenas de uma foto. Um tuiteiro sugeriu uma explicação alternativa totalmente compatível com o que se vê na imagem: a mulher estaria “assustada, confusa e aturdida, como todos os britânicos que estavam ali naquele momento. Podia estar ligando para sua família para dizer que estava bem”.

Mas as reações mais compartilhadas expressavam o viés com que muitos tuiteiros conservadores interpretaram a foto. Uma delas, com 1.400 retuitadas, mostrava a imagem de um homem branco que passava perto de uma cena semelhante e com uma atitude parecida, mas que ninguém acusara de estar alheio ao que acontecia. Tuiteiros espanhóis também a difundiram.

Quando olhamos para outras fotografias tiradas no dia do atentado e publicadas pela imprensa, podemos ver que muitas pessoas passaram pela mesma área sem se deter para olhar para os feridos. E isso é normal: se as vítimas já estão sendo atendidas e nós não temos conhecimento médico, a única coisa que estaríamos fazendo se parássemos ali seria atrapalhar o socorro prestado. Isso para não dizer que, como já foi assinalado, ignoramos grande parte do contexto dessas imagens.

Duas fotografias de Toby Melville (Reuters) publicadas nesta quarta-feira pelo EL PAÍS, nas quais também se veem transeuntes passando pelo lado, mas que nem por isso foram acusados de nada (o que é o normal).
Duas fotografias de Toby Melville (Reuters) publicadas nesta quarta-feira pelo EL PAÍS, nas quais também se veem transeuntes passando pelo lado, mas que nem por isso foram acusados de nada (o que é o normal).

Vemos aquilo que queremos ver

Aqueles que compartilharam a imagem como sendo uma suposta demonstração do ódio que os muçulmanos teriam do Ocidente evidenciaram, na verdade, que, no fim das contas, todo mundo vê aquilo que quer ver. Trata-se de outro exemplo do que acontece quando nos deixamos levar pelo viés da confirmação.

Quando somos vítimas desse atalho mental, limitamo-nos a considerar apenas os dados que reiteram as nossas ideias e desprezamos as informações que as contradizem. Por isso, muitos nem sequer atentaram para as fotos semelhantes à da mulher quando o protagonista era um homem branco ou um casal de meia-idade. Não viram nada de estranho nessas imagens, embora nelas acontecesse, na verdade, a mesma coisa.

É claro que a foto da mulher (e as outras) dá margem a várias explicações possíveis, sem que tenhamos provas de nenhuma delas. Mas todas essas considerações dão na mesma: aceita-se o que é evidente, mesmo que não o seja. Neste caso, por exemplo, muita gente não leva em conta que o rosto da mulher expressa uma clara preocupação e que é absolutamente normal que depois de um atentado se pegue o celular e se avise aos outros que estamos bem. Muita gente viu apenas a cor da pele e o lenço que ela portava.

Como explica Michael Shermer em seu livro The Believing Brain, interpretamos a informação que nos chega para que ela se encaixe no nosso modelo de realidade, que quase nunca colocamos em questão. Texas Lone Star e aqueles que concordam com ele veem aquilo que querem ver e ignoraram o que querem ignorar.

É uma coisa que todos nós fazemos, sim, uma ou outra vez. O importante é ter consciência, com o objetivo de ao menos nos darmos conta disso e, na medida do possível, evitá-lo. Principalmente para não acabar linchando uma pessoa sobre a qual nada sabemos.

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