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A revolução do papa Francisco completa quatro anos

Pontífice abraçou amplo processo de reforma que despertou esperança geral e algumas críticas internas

Daniel Verdú
O papa Francisco na Santa Magdalena de Cardossa, em Roma, no domingo.
O papa Francisco na Santa Magdalena de Cardossa, em Roma, no domingo.F. Origlia (Getty Images)

Passavam-se cinco minutos das sete da noite do dia 13 de março de 2013 e chovia na praça de São Pedro, no Vaticano. A fumaça branca começou a sair pela chaminé — o comignolo — sobre o telhado da Capela Sistina e o cardeal Juan-Louis Tauran anunciou em latim o nome do novo pontífice. Ele não constava das listas das principais apostas, saiu na quinta votação e muita gente não sabia nem mesmo de onde provinha. Era o Papa de número 266 a se sentar na cadeira de Pedro, mas o primeiro que vinha do fim do mundo, como ele mesmo brincou em suas primeiras palavras. Um lugar, no entanto, de onde procedem hoje 49% dos fiéis de uma comunidade integrada por 1,3 bilhão de pessoas. Os que o elegeram sabiam que aquele seria o começo de um pontificado revolucionário, era urgente que houvesse mudanças em uma igreja em crise, manchada por todo tipo de escândalos. À luz de algumas resistências depois desses quatro anos, pode-se supor que nem todos imaginavam o alcance daquilo que ele tinha em mente.

Entrevista com o Pontífice

O papa Francisco conversou com o EL PAÍS no final de janeiro: "O perigo é que, em tempos de crise, busquemos um salvador".

A primeira coisa que Jorge Mario Bergoglio (Buenos Aires, 1936) fez ao aparecer no balcão do Vaticano já como papa Francisco, foi dedicar uma prece a Bento XVI: um pontífice emérito que, pela primeira vez desde a Idade Média, iria conviver com o novo. Uma característica que por si só já tornaria singular o seu mandato, desde o primeiro dia. O respeito mútuo e a relação que os dois mantêm — conta-se que Bergoglio deu um passo para trás no conclave anterior, que Ratzinger foi eleito — é um dos eixos gravitacionais de seu mandato. Mas, a partir desse respeito, surge também uma das grandes diferenças. Enquanto a Igreja de Bento XVI se baseava fundamentalmente na teologia, a de Francisco se volta para o céu com uma atitude muito mais pastoral e próxima da terra; adotando gestos e um linguajar de aproximação. No fim das contas, a narrativa constituída por um abraço a um doente grave de neurofibromatose — a imagem correu o mundo — pode ser mais poderosa do que uma encíclica.

Com maior ou menor profundidade, ao longo desses quatro anos Francisco tem abordado os temas mais delicados que afetavam a instituição. As portas estão abertas, e há avanços significativos em alguns aspectos; em outros, porém, ele encontrou maior resistência. As finanças do Vaticano melhoraram — o déficit caiu pela metade, embora as contas ainda sejam estranhamente pouco transparentes para uma instituição dessa magnitude; a Igreja se abriu para homossexuais, ou pelo menos se refutou a sua marginalização, e em entrevista semana passada ao Die Zeit, ele avançou a possibilidade de que homens casados venham a ser ordenados para prestar algum tipo de serviço em lugares onde haja crise de vocações.

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A iniciativa que provocou mais polêmica surgiu justamente com o texto da Amoris Laetitia, a famosa exortação apostólica com a qual ele abriu a Igreja a homens divorciados que se casaram novamente, o que lhe custou uma longa campanha de ataques demolidores — cartazes na rua ou uma capa falsa do l’Osservatore Romano — por parte de alguns membros da Cúria liderados, de forma aberta, pelo cardeal norte-americano Raymond Burke. O religioso criticou o texto, expôs suas dúvidas e pediu um esclarecimento público de Francisco. Burke também chegou a dizer que “uma agenda gay” estaria tomando conta do Vaticano.

A resistência às mudanças se espalha por dezenas de blogs que orbitam em torno dos membros mais conservadores da Igreja. Mas também foram expostas do lado de dentro. Marie Collins, uma das duas vítimas de abusos que integravam a nova comissão criada pelo Papa para analisar e prevenir os casos de pederastia na Igreja, retirou-se na semana passada, denunciando ter encontrado resistências demais às mudanças. Especialmente na Congregação para a Doutrina da Fé (antigo Santo Ofício). A resistência é minoritária, mas incomoda. O próprio Francisco admitiu neste domingo a um grupo de crianças de uma paróquia romana que teme mais as maledicências das pessoas, “inclusive da Cúria”, do que as bruxas.

Mas até agora nada disso o segurou. Andrea Riccardi, professor de história do cristianismo e fundador da prestigiada comunidade humanitária Sant Egidio, acredita que Francisco é “um grande reformador”. “O Papa tem como eixo a adaptação pastoral de sua Igreja. Acredito que as resistências aparecem porque ele quer mudar muitas coisas. Mas ele se dedicou também à reforma da Cúria, e aí as coisas caminham muito lentamente. Sobretudo porque o Papa entendeu que a verdadeira reforma é a do novo pessoal e de sua conversão espiritual. É o discurso sobre a enfermidade da Cúria. Ele quer mudar a mentalidade do serviço romano”, observa Riccardi.

Francisco fez renascer a força diplomática do Vaticano e conquistou o respeito de líderes mundiais como Angela Merkel e Barack Obama

Embora Francisco não tenha fraquejado em nenhum momento ao apontar os problemas da Cúria, como no famoso e direto discurso em que descreveu as 15 doenças que a ameaçam, ou ao tomar decisões como a da destituição do Grão-Mestre da Ordem Soberana de Malta — que desobedeceu às suas determinações —, muitas pessoas veem no seu mandato um papado horizontal. Para a eleição do vigário de Roma, por exemplo, acaba de se abrir um processo de consulta aos párocos, uma espécie de primárias vaticanas. E a fim de ter uma assessoria permanente, ele formou um conselho de cardeais — conhecido como C9 — que discute, analisa e se pronuncia em relação às grandes reformas. Inclusive as que se expandem bem além dos muros do Vaticano.

O Papa no Muro das Lamentações, em Jerusalém, em maio de 2014.
O Papa no Muro das Lamentações, em Jerusalém, em maio de 2014.ANDREW MEDICHINI (AFP)

Pois, nesses quatro anos, Francisco também fez ressurgir o enorme poder diplomático da instituição. Viajou a lugares para onde foi convidado, pronunciou-se a respeito de questões geopolíticas — do conflito entre Palestina e Israel aos planos de Donald Trump — e abriu as portas (sem medidas concretas ainda) para a retomada das relações do Vaticano com a China. Tanto em suas viagens como em seu discurso, Francisco se lançou em busca da conquista das periferias políticas e culturais do planeta e conquistou o respeito de governantes como Angela Merkel e Barack Obama com sua defesa da ecologia e a luta contra a corrupção.

Conviver com a existência de um papa emérito foi o primeiro sintoma de que o mandato de Francisco seria diferente de todos os outros

Seu envolvimento na questão do drama dos refugiados e da imigração, sua viagem a Lesbos, de onde retornou com três famílias sírias e cujo cenário qualificou como “a maior tragédia humanitária desde a II Guerra Mundial”, foi um dos pontos culminantes de uma ininterrupta ação humanitária que o levou do centro do mundo a cada rincão das periferias culturais, políticas e sociais do planeta.

Quando Francisco se tornou Papa naquela tarde chuvosa de 13 de março de 2013, a verdadeira tempestade se produzia do lado de dentro dos muros do Vaticano. Seus quatro anos de pontificado abriram a instituição para o mundo e procuraram transformar o repúdio que ela começava a provocar em acolhimento. Em uma instituição na qual a unidade de medida de tempo são os séculos, quatro anos ainda são pouco para saber do alcance que terá a revolução que Jorge Mario Bergoglio abraçou. As janelas do Vaticano foram abertas naquela tarde, mas é cedo para saber se o ar que circula no seu interior foi realmente renovado.

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