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O supermercado reage a Temer: “Ele quer voltar aos tempos da ‘Amélia”

Declaração irrita redes, mas também as ruas. Homens e mulheres veem discurso de outra época

María Martín
Priscila Galhardo e Zalor Martins, pais de uma criança de um ano, fazem a compra juntos.
Priscila Galhardo e Zalor Martins, pais de uma criança de um ano, fazem a compra juntos. Mauro Pimentel
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Denise, Luciana e Luciene, três mulheres do bairro carioca do Flamengo, conversam de pé do lado de uma banca que vende cangas, um pouco antes do horário do almoço. Ninguém as espera para preparar a comida. Nenhuma delas tinha ouvido ainda as gafes do presidente Michel Temer no discurso do Dia Internacional da Mulher mas, em seguida, pedem para saber. “Você tem aí?”, questionam. "Tenho absoluta convicção, até por formação familiar e por estar ao lado da Marcela [Temer], do quanto a mulher faz pela casa, pelo lar. Do que faz pelos filhos”, recita a reportagem.

– "É sério? Servimos só para isso?", questiona Luciene, musicista, e “trabalhadora desde os oito anos de idade”.

A reportagem continua reproduzindo o discurso do peemedebista: "Na economia, também, a mulher tem uma grande participação. Ninguém mais é capaz de indicar os desajustes de preços em supermercados mais do que a mulher. Ninguém é capaz melhor de identificar eventuais flutuações econômicas do que a mulher, pelo orçamento doméstico."

A fala acende um debate entre elas e Luciene, hoje com 51 anos, continua: “Que eu saiba a mulher também serve para ser deputada, presidenta... Concordo em que é importante em casa, mas meu marido sozinho não sustenta. Eu trabalho e a gente divide tarefas. Não tem outro jeito. Nós não somos fiscais de supermercado da época de Sarney, não”. “Eu sou caixa de supermercado e é meu marido quem faz as compras”, relata Denise, de 55 anos. “Eu nem casada sou e pago alguém para que cuide da casa e do mercado. Para isso é que eu trabalho tanto. Eu vou quando preciso, mas não sei dos desajustes dos preços, não”, arremata Luciana, a dona da banca das cangas.

Num supermercado próximo, quatro homens dividem mesa em uma lanchonete. O mais velho, William Pires, de 62 anos, ao ouvir o assunto, antecipa que vai ter polêmica. “É difícil avaliar esse discurso. Ele encarou a mulher como mãe, sim, mas qual mulher não quer ter filhos?”. Ao ouvir que há muitas mulheres que não desejam ter filhos, ele, 14 anos mais jovem que Temer, retruca: “Mas se você tivesse marido, não gostaria de cuidar dele?”. Confrontado mais uma vez, sob a premissa de que os maridos são capazes de cuidarem de si mesmos, Pires, que diz “ajudar” a mulher, modera o tom: “Eu entendo que na visão moderna, a fala foi classificada de infeliz, mas na minha visão, por como eu fui criado, é uma fala normal”.

Os colegas de mesa observam e interrompem. Não concordam. “Em momento nenhum ele falou da importância da economia em outros setores, fora do supermercado. Foi um erro”, diz Glauco Cosenza, de 37 anos, que diz compartilhar todas as tarefas de casa “até porque eu quero que meu filho saiba quem é o pai dele”. “A mulher luta pela independência, pela igualdade. Se Temer quer voltar aos tempos da Amélia [em referencia ao samba de 1942 que canta à mulher de verdade, que lavava, passava e cozinhava] vamos voltar à ditadura, então?”, segue Cosenza.

Na fila do supermercado, o tema anima tanto a homens como a mulheres. “Eu não gostei, não. Meu marido lava louça, já deu mamadeira, trocou fralda, ele faz comida... Ele, inclusive, sabe mais de preços do que eu. Eu entro no mercado e compro, enquanto ele gosta de rodar todas as lojas para encontrar as melhores ofertas. Temer partiu do princípio de que só homem trabalha fora e isso é uma ideia de muito tempo atrás. Não acho que ele foi mal intencionado, ele não quis ferir ninguém, mas é impossível que ele não esteja atualizado, é muito machista,” conta a corretora Vania Polola, mulher de um taxista, de 52 anos. Junto à Vania está seu sobrinho que dispara: “É ridículo isso que ele falou, ele tem uma cabeça diferente. Na minha casa tudo é decidido com minha noiva e os dois contribuímos financeiramente. As coisas das gatas que ela gosta, ela sabe tudo e compra, mas para os preços de refrigerante, por exemplo, sou eu. A gente cuida do que mais gosta”.

Apressada na rua, carregando duas crianças recém saídas de uma escola particular e acompanhada de seu marido com mais duas crianças no colo, Michele, de 38 anos, lamenta que Temer “não deixa de estar certo”. “A sociedade, infelizmente, é machista, mas ele foi infeliz por não dizer que as mulheres, como profissionais, identificam flutuações de preço em qualquer setor e não só no mercado”. “Ele não tem noção da vida que as pessoas levam aqui no Brasil. Com certeza ele não vive nossa realidade. Na nossa idade, não somos mais criadas para cuidar da casa e dos filhos!”, conta em uma praça, a poucos passos da assistente fiscal Jenise Ramos, de 25 anos. “Eu me imagino cuidando da minha casa, sim, mas dentro da minha realidade, que é tudo dividido”.

Seguindo um carrinho, na zona de congelados, Priscila Galhardo e Zalor Martins, pais de uma criança de um ano, fazem a compra juntos. Os dois, ela “mais à direita” e ele “mais de esquerda”, assistiram com espanto à fala do presidente. “Aqui quem tem tempo, faz. Eu não gosto de cozinhar, então lavo louça enquanto ele faz a comida. Minha mãe parou de trabalhar quando eu nasci, mas hoje no meu entorno isso não existe mais. Tanto é que se alguma amiga deixa sua profissão para cuidar dos filhos a primeira pergunta que sai é ‘mas, como pode?”, relata Priscila, dentista de 37 anos. “É uma visão muito antiquada, mas é o perfil dele”, afirma Zalor, advogado de 35 anos, que completa: “Infelizmente no Brasil, independentemente da ideologia, somos um país machista”.

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