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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Viagem ao coração da empreitada lulista na África

Em livro, jornalista conta as impressões dos locais sobre o Brasil, agora sob o impacto da Lava Jato Obra não deve ser confundida com uma indigesta expedição punitiva do capitalismo de Estado brasileiro

Lula em Moçambique em 2003.
Lula em Moçambique em 2003. Ricardo Stuckert/PR

Um grande mérito de Fábio Zanini em Euforia e Fracasso do Brasil Grande: Política Externa e Multinacionais Brasileiras na Era Lula (ed. Contexto), que será lançado nesta terça-feira em São Paulo, foi entender que a soma dos microrrelatos que compõem seu livro não resultam em uma definitiva obra investigativa sobre as relações internacionais da era Lula, agora revistas sob a controversa lente das revelações da Operação Lava Jato. A força da obra está em ser, na tensão entre a literatura de viagem e o jornalismo, uma rara janela para a empreitada do Governo brasileiro e suas empresas em busca de negócios e projeção global, especialmente na África.

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Mestre pela School of Oriental and African Studies, Zanini foi um observador participante da “euforia” das relações internacionais brasileiras. No seu blog Pé na África, na Folha de S. Paulo, Zanini oferecia uma perspectiva privilegiada do terreno da ainda meio desconhecida presença brasileira no continente. Enquanto editor de internacional e agora de política na Folha, Zanini tem sido um observador atento do “fracasso”, acompanhando os grandes embates entre diplomatas, bancos públicos e animais políticos.

Euforia e Fracasso é muito mais ligado a Pé na África. A proposta do livro é desenvolver uma série de micronarrativas sobre personagens excêntricos e empreitadas aventureiras em países tão fascinantes como exóticos para o leitor não iniciado. Essas microhistórias oferecem elementos preciosos porque notas sobre o dia a dia do Brasil no mundo são pouco frequentes. Praticamente todas as análises se confinam aos escritórios, palácios e salões de conferências, obviamente insuficientes. Observadores participantes das relações internacionais brasileiras como Zanini são raros: acadêmicos brasileiros enfrentam dificuldades em realizar trabalho de campo. Os grandes jornais brasileiros reduziram drasticamente o número de correspondentes e, de todo modo, se interessam pouco pela política internacional. No mais, as empresas brasileiras evitam os holofotes. Tudo isso torna o material reunido pelo jornalista muito útil para outros trabalhos no futuro.

Zanini adiciona peças importantes ao quadro em torno do tripé que estruturou as relações Brasil-África durante o período analisado no livro - a retórica diplomática da solidariedade, os programas de investimento público e o ativismo das grandes corporações. Por trás do tripé, era o petróleo e a perspectiva de prosperidade prodigiosa que realmente alimentava a “euforia” das relações Brasil-África.

O fracasso após a euforia está associado ao colapso repentino do preço das commodities

Nessa época, os consultores-profetas anunciavam com toda a pompa e circunstância a iminente emergência de uma “Amazônia Azul”. A descoberta do pré-sal era um sinal de que o Atlântico Sul estava prestes a tornar-se a próxima grande fronteira da indústria petrolífera. Nesta Amazônia Azul, a Namíbia era o deserto dos tártaros. Os militares brasileiros se mobilizaram para ajudar os seus colegas namibianos a se prepararem para a honrosa missão de proteger a bacia do Atlântico Sul das ameaça externas, que se multiplicariam uma vez iniciadas as explorações das suas reservas estratégicas de petróleo.

O saboroso relato de Zanini das desventuras da família Wanderley, que tentava replicar o conto de fadas brasileiro de Eike Batista na Namíbia, ilustra como a descoberta de petróleo estava longe de ser um dado adquirido no Atlântico Sul. No final das contas, seguindo o desenrolar da exposição, a cooperação Brasil-Namíbia revela-se tão pacata quanto as ruas limpinhas e vazias de Windhoek, a capital namibiana.

O caso da Guiné Equatorial aparece como uma deriva sinistra de um projeto de política africana que, apesar das suas controvérsias, era coerente com a estratégia de afirmação do Brasil no palco internacional. Zanini conta as manobras fantasiosas das empreiteiras brasileiras para agradar a tirania familiar dos Obiang, que governa o país com mão de ferro há mais de três décadas. Essas histórias revelam que a presença do Brasil na Guiné Equatorial era desprovida de qualquer caráter desenvolvimentista, estratégico e muito menos humanista. Na realidade, ela não passava de uma orgia carnavalesca entre uma gangue de empreiteiras e uma cleptocracia.

Angola, de longe o caso mais interessante e complexo das relações Brasil-África, destaca-se por um paradoxo. Nenhum outro Governo procurou importar o “modelo brasileiro de desenvolvimento” tão escrupulosamente. O Governo angolano se cercou de marqueteiros brasileiros, desenvolveu o seu próprio “Minha Casa Minha Vida” e replicou outros programas elaborados pelo Governo Lula a fim de densificar a presença do poder público em território nacional. Porém, em nenhum outro país africano a presença efetiva do Estado brasileiro foi tão irrelevante como em Angola.

A Odebrecht, agora movendo o tsunami da Lava Jato, foi o portal através do qual Brasil e Angola interagiram. Zanini narra com precisão a inserção da empresa no país, da sua primeira investida na década de 1980 à sua afirmação como eminência parda do Governo angolano, chefiando a execução de uma variedade alucinante de atividades, da recolha de lixo à indústria petroquímica. Como indica o autor, a Odebrecht é uma das maiores financiadoras da Fundação Eduardo do Santos, apontada por outros pesquisadores como um dos principais veículos de lavagem de dinheiro do presidente e da sua entourage.

A presença do Brasil na Guiné Equatorial não passava de uma orgia carnavalesca entre empreiteiras e uma cleptocracia

Moçambique é um ponto fora da curva. A presença brasileira no país é alavancada pela corrida a outro recurso natural: o carvão. Ao contrário de Angola, o Estado brasileiro desempenhou um papel fundamental na investida da Vale e das companhias que a acompanharam na empreitada. O Estado brasileiro assumiu uma posição de agente comercial que comprometeu a imagem brasileira e criou desconforto entre os próprios diplomatas, segundo relatos do autor.

O fracasso ocorrido após a euforia está intrinsecamente associado ao colapso repentino do preço das commodities, que secou o financiamento do tripé que possibilitava a investida brasileira na África. As operações da Odebrecht em Angola resultaram em um sem número de elefantes brancos, de cadeias de supermercado falidas a projetos agrícolas inviáveis. Em Moçambique, a Vale simplesmente desertou da região de Tete, deixando ao Governo moçambicano a responsabilidade de lidar com a fúria dos locais, a quem foi prometido um futuro escandinavo. Como em todo clássico fim de festa, as empreiteiras brasileiras saíram de fininho da Guiné Equatorial; deixando para trás o cheiro do dinheiro queimado em megaprojetos absurdos. Na Namíbia, os trompetistas do Exército continuam tocando as marchas ensinadas pelos brasileiros, lembrando os soldados perdidos que continuam lutando depois do final da guerra.

Os azares brasileiros e globais

O livro de Zanini inviabiliza qualquer devaneio que queira descrever, sem matizes, a empreitada lulista na África como o experimento inovador de uma potência emergente, trabalhando em bases mais equânimes com seus novos sócios. O que não aparece na obra, e que pode eventualmente levar o leitor a tirar conclusões erradas sobre a ascensão e queda das relações Brasil-África, é que os azares brasileiros se assemelham às desventuras de muitos outros países engajados no continente africano, como a França, China e o Reino Unido.

A obra se insere num subgênero da literatura africanista, o de jornalistas-viajantes que atravessam o continente analisando a presença dos governos e empresas de seus respectivos países. Em A pilhagem da África (2015), Tom Burgis, do Financial Times, retrata a corrupção devastadora da British Petroleum na Nigéria e os jogos perigosos do ex-premiê Tony Blair nas negociações das grandes mineradoras britânicas na África. Do financiamento de campanhas presidenciais francesas pelo presidente do Gabão Omar Bongo à rede de negócios de Vincent Bolloré, que controla praticamente todos os portos industriais do Golfo da Guiné, passando pelo território semicolonial do deserto do Niger destinado à produção de urânio para a companhia francesa Areva, as redes de corrupção são parte integral do projeto francês na África pós-colonial.

Como Joseph Conrad nos ensinou, o colonialismo corrói a alma do colonizador com a mesma violência que a do colonizado

Os exemplos não servem para banalizar os desvios que o Governo e as empresas brasileiras podem ter cometido na África, mas ajudam a colocá-los em perspectiva. Se na maior parte do tempo foi business as usual, uma política externa que resista a um profundo escrutínio democrático ainda não se concretizou em nenhuma parte. A crítica das relações entre Brasil e África deve partir da premissa de que, primeiro, os Estados africanos têm uma posição assimétrica dentro do sistema de Estados-nações modernos e, segundo, os seus líderes desempenham um papel fundamental na perpetuação do subdesenvolvimento dos seus respectivos países. A análise deve ser pautada por uma visão ecumênica que reconhece a dependência e a intermediação dos atores envolvidos. Como Joseph Conrad nos ensinou em O Coração das Trevas e Nostromo, o colonialismo corrói a alma do colonizador com a mesma violência que a do colonizado.

Sem essa nuance, o livro pode provocar o efeito indesejado de estimular o complexo de vira lata em certos leitores. Eles podem assim ser tragados por outra ilusão: a de que as desventuras da política externa são única e exclusivamente o resultado das imoralidades do Estado e das empresas brasileiras ou ainda das evocadas megalomanias dos mandatários da vez. Fazer isso, tornaria a leitura do livro numa indigesta expedição punitiva do capitalismo de Estado brasileiro, culpado de tentar fazer o que todos os outros fazem: afirmar-se no mundo nas costas dos mais fracos.

Mathias Alencastro é cientista político com estudos na Sorbonne (França) na Universidade de Oxford (Reino Unido) sobre Angola. Em abril, ele ministrará o curso de extensão Políticas Africanas na  Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

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