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Dois cientistas guardam um filme dos irmãos Lumière, de 1895, em uma molécula de DNA

Um novo método de armazenamento promete multiplicar a capacidade dos discos rígidos atuais

Manuel Ansede
Fotograma de ‘Chegada de um trem à estação de La Ciotat’, de 1895.
Fotograma de ‘Chegada de um trem à estação de La Ciotat’, de 1895.
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Dizem que os irmãos Lumière, depois de patentear o cinematógrafo em 1895, proclamaram: “O cinema é uma invenção sem nenhum futuro”. Mas, na realidade, eles nunca disseram isso. Sabiam sem dúvida que aquela máquina que filmava e projetava imagens em movimento era uma revolução. Um de seus primeiros filmes foi Chegada de um trem à estação de La Ciotat, na qual mostravam por 50 segundos a entrada de uma locomotiva a vapor na plataforma da cidade francesa.

Mais de um século depois, aquele filme protagoniza outra revolução. Dois cientistas da Universidade de Columbia (EUA) guardaram o breve filme dos Lumière em uma molécula de DNA, a linguagem em que está escrito o manual de instruções de nossas vidas. A ideia não é nova. Há cinco anos, o geneticista norte-americano George Church guardou pela primeira vez um livro em DNA. O revolucionário agora é a técnica, que pode permitir um novo tipo de armazenamento diante da avassaladora avalanche de dados que a humanidade gera.

O DNA é ultracompacto e teoricamente poderia durar milhares de anos com informações recuperáveis

Contando a pornografia, os vídeos de gatinhos do YouTube, as fotografias de férias no Facebook, as músicas do Spotify e tudo que se pode imaginar, o mundo digital ocupará 44 trilhões de gigabytes em 2020, dez vezes mais do que em 2013, segundo a multinacional Dell EMC. Em algum momento próximo, terá dados demais para os atuais discos rígidos.

Mas os geneticistas Yaniv Erlich e Dina Zielinski poderão ter a solução para essa questão. Coletaram uma versão digital do filme de 1895 e a colocaram em uma pasta de seu computador, junto com um vírus, um sistema operacional completo, um cartão de presente de 50 dólares para compras na internet, um texto do matemático Claude Shannon e uma placa como as enviadas nas sondas espaciais Pioneer 10 e Pioneer 11, com mensagens simbólicas para o caso de depararem com uma civilização extraterrestre. A pasta compactada ocupava apenas dois megabytes.

Erlich e Zielinski utilizaram então seu novo método, batizado de Fonte de DNA. Seu algoritmo converte os zeros e uns do clássico código binário dos computadores nas quatro letras que compõem o DNA (A, G, C, T), com uma precisão sem precedentes. Segundo relatam no último número da revista Science, as sequências de DNA com muitas combinações GC ou com muitas letras repetidas (AAAAAA...) tendem a gerar erros na hora de ser sintetizadas em moléculas. O algoritmo, criado originalmente para assistir vídeos de forma contínua no celular, vence esse obstáculo ao apagar as combinações problemáticas e acrescentar sequências de reforço.

Os geneticistas Yaniv Erlich e Dina Zielinksi criam cópias de moléculas de DNA.
Os geneticistas Yaniv Erlich e Dina Zielinksi criam cópias de moléculas de DNA.NYGC

Os cientistas enviaram então este texto (CATTGACCGA...) a partir da Universidade de Colúmbia, em Nova York, para San Francisco, para a empresa de biologia sintética Twist Bioscience, que por 7.000 dólares (cerca de 21.000 reais) converteu o código em moléculas de DNA. De volta a Nova York, os pesquisadores leram esse DNA por outros 2.000 dólares (6.000 reais) com máquinas de sequenciamento de última geração, converteram de novo o código genético em zeros e uns e conseguiram assim ver novamente Chegada de um trem à estação de La Ciotat. Recuperaram todos os arquivos com “zero erro”, segundo publicam em um estudo, e esperam que os custos financeiros diminuam muito no futuro.

“Conseguimos recuperar perfeitamente a informação com uma densidade de 215 petabytes por grama de DNA”, se orgulham os autores no artigo. O pioneiro do conceito, George Church, da Universidade de Harvard, anunciou no ano passado que tinha codificado 22 megas de sequências de vídeo em moléculas de DNA, 10 vezes mais do que a pasta com o filme dos irmãos Lumière. “O recorde de Yaniv Erlich e Dina Zielinski é a densidade: 8,5 vezes mais do que o recorde anterior [obtido em 2015 por uma equipe da Escola Politécnica Federal de Zurique]”, reconhece Church com espírito esportivo. “O limite teórico de densidade é 2.000 vezes maior, então ainda há muita margem para melhorias futuras”, acrescenta.

“O limite teórico de densidade é 2.000 vezes maior, então ainda há muita margem para melhorias futuras”, acrescenta o geneticista George Church

Erlich não vê esse sistema nos lares em um futuro próximo. “Imagino mais um serviço na nuvem, no qual as pessoas subam dados e nem saibam que sua informação está armazenada em DNA”, explica o cientista à revista Materia. Para Erlich, o calcanhar de Aquiles atual é o preço: “Sintetizar um mega de informação em DNA custa cerca de 3.000 euros [cerca de 10.000 reais], mas sou otimista em relação ao futuro. Há duas décadas, sequenciar DNA era 100 milhões de vezes mais caro do que hoje. Se a síntese seguir o mesmo caminho, podemos chegar ao preço correto”.

Em sua opinião, o DNA é um suporte ideal de armazenamento, já que é ultracompacto e pode se multiplicar de forma ilimitada. Além disso, segundo um paper da Universidade de Colúmbia, o DNA “pode durar centenas de milhares de anos se for mantido em lugar fresco e seco, como demonstra a recente recuperação de DNA de ossos de um ancestral humano de 430.000 encontrados em uma caverna na Espanha”.

O paper se refere à análise em 2013 de dois gramas de fêmur fóssil de um humano que viveu há quase meio milhão de anos entre ursos e leões no que hoje é o Pico dos Ossos da serra de Atapuerca, em Burgos. O geneticista Carlos Lalueza-Fox, do Instituto de Biologia Evolutiva de Barcelona, recorda no entanto que no caso do Pico dos Ossos “os fragmentos de DNA estão degradados a menos de 50 nucleotídeos [letras], e por isso sua capacidade de armazenagem está limitada por esse fator”.

“É possível, no entanto, que tenham razão e que, no momento, o DNA seja o material mais duradouro sobre o qual podemos deixar mensagens para o futuro; é chocante, mas é assim”, reflete Lalueza-Fox, um dos maiores especialistas do mundo em recuperação de DNA antigo. A informação, especula, “poderia ser encriptada no DNA de um organismo vivo, perdurando geração após geração enquanto existisse a tal espécie, apesar de que seria interessante também calcular quanto tempo (e quantas mutações) seriam necessárias para que a mensagem fosse apagada e não pudesse mais ser decifrada”. O trem da estação de La Ciotat chegaria assim ao interior de um ser vivo.

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