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Vacina terapêutica controla o HIV sem o uso de antivirais

Combinação da vacina com um fármaco que faz aflorar o vírus latente permite a um grupo de doentes controlar a infecção, mas não a elimina

Jessica Mouzo

Se existe algo que dificulta a eliminação do HIV é a capacidade do vírus para se integrar no material genético das células que infecta e não aparecer. Seu talento para se camuflar complica o trabalho do sistema imunológico, incapaz de reconhecer as células infectadas e eliminá-las. Por isso, a pesquisa avança em direção a uma nova estratégia para combater o HIV, a chamada kick and kill: a ideia é despertar o inimigo, fazê-lo sair de seu esconderijo e matá-lo. Essa é a tática de guerra utilizada por pesquisadores do Irsicaixa de Barcelona (Espanha) em seu último teste clínico para combater o vírus da AIDS.

Imagem microscópica do vírus do HIV.
Imagem microscópica do vírus do HIV.AGE Fotostock

Os cientistas provaram que a combinação de uma vacina terapêutica com um fármaco que faz aflorar o vírus escondido permite a um grupo de pacientes controlar o HIV sem a necessidade de tomarem a medicação antiviral. No teste clínico, os médicos suspenderam o tratamento antirretroviral de um grupo de 13 pacientes e lhes administraram a vacina terapêutica e o fármaco despertador. Os resultados mostraram que cinco deles foram capazes de controlar o vírus durante mais de quatro semanas, o tempo máximo em que, de acordo com a literatura científica, o vírus demora a ressurgir no organismo quando a medicação antiviral é suspensa. O teste clínico continua em andamento e, mesmo que o vírus não tenha desaparecido de seu corpo – e, portanto, não se pode dizer que estejam curados –, os pacientes estão de cinco a 27 semanas controlando o HIV sem tomar a medicação.

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Os cientistas chamam essa descoberta de “a prova de conceito”, a demonstração de que suas pesquisas estão no caminho certo. Mas ainda resta muito a percorrer. Para começar, porque a pesquisa e seu resultado não são extrapoláveis a toda a população infectada com o HIV. O estudo começou com 15 pacientes, mas os resultados preliminares são de 13 deles – um paciente não preenchia os requisitos para suspender o tratamento com segurança e outro ainda não teve a confirmação dos resultados de um teste para deter a medicação –. “O conjunto do estudo é de pessoas muito selecionadas, voluntários detectados muito precocemente e que também começaram o tratamento muito precocemente”, diz a doutora Beatriz Mothe, coordenadora do teste. São pacientes com infecção aguda, ou seja, que foram diagnosticados e medicados antes dos seis meses da transmissão. De acordo com os especialistas, esse grupo de pacientes, os que têm infecção aguda, representam somente de 5% a 10% dos infectados. Por isso o teste não pode ser extrapolado ao conjunto da população com HIV. Além disso, todos eles participaram de um estudo anterior (o BCN01) durante seu primeiro ano de tratamento em que já lhes foram administradas duas doses da mesma vacina terapêutica. “Nessa ocasião eles não pararam com o tratamento antiviral, mas nos permitiu saber que essas vacinas eram seguras e que provocavam a resposta imunológica que nós queríamos”, acrescenta a pesquisadora.

Com o conjunto selecionado, os pesquisadores iniciaram o kick and kill agindo em duas frentes, primeiro, através da vacina terapêutica (criada por pesquisadores da Universidade Oxford), os médicos reforçaram e reeducaram o sistema imunológico para poder eliminar as células infectadas. “O que essa vacina pretende é fazer com que o exército de linfócitos que combate as células infectadas possa reconhecê-las de maneira eficaz e eliminá-las efetivamente”, explica Mothe. O problema, entretanto, são as células que estão infectadas, mas escondidas, que não se reproduzem e não mostram o vírus, e mesmo que o sistema imunológico esteja reforçado e pronto para atacar, é incapaz de detectá-las. O grupo de células infectadas em estado latente – não se reproduzem – é chamado de reservatório viral, a causa pela qual o tratamento antirretroviral não pode ser interrompido nunca. A única forma de destruir esse reservatório é despertar essas células adormecidas e obrigá-las a se mostrar com o vírus que escondem, para que o sistema imunológico possa reconhecê-las e eliminá-las.

Os cientistas chamam essa descoberta de “a prova de conceito”, a demonstração de que suas pesquisas estão no caminho certo

Com o exército imunológico já reforçado através da vacina terapêutica, os pesquisadores utilizaram o fármaco, conhecido por seu uso como tratamento oncológico, para despertar as células infectadas que permanecem latentes. “A Romidepsina [da farmacêutica Celgene] é um quimioterápico aprovado nos Estados Unidos para doenças hematológicas e nos interessava porque existiam estudos anteriores que demonstravam que era capaz de reativar o vírus latente, o reservatório”, explica a coordenadora do estudo.

Os pesquisadores administraram uma dose da vacina antes de fornecer o fármaco (por infusão na veia). Depois, três doses de Romidepsina, uma por semana. E por último, outra dose da vacina. Oito semanas depois do tratamento, a equipe interrompeu a medicação antirretroviral prescrita aos pacientes. Cinco dos voluntários do teste conseguiram manter controlado o vírus e superar o limite de quatro semanas marcado pela literatura científica. Os outros sete precisaram reiniciar o tratamento quando se detectou uma volta do vírus. “Parece que pela primeira vez podemos vir a controlar o vírus com uma vacina terapêutica”, diz Mothe.

“Não estão curados”

De acordo com os pesquisadores, o reservatório viral dos cinco pacientes se reduziu em relação ao começo do tratamento, mas é preciso estudar se essa baixa se deve “à vacina ou aos antivirais que os pacientes tomavam”, explica o pesquisador do Irsicaixa, Javier Martínez-Picado. Os pacientes que controlam o vírus (estão sem medicação há 5, 13, 17, 20 e 27 semanas respectivamente) são, segundo os pesquisadores, “controladores virais potenciais”. Os especialistas afirmam, contudo, que não estão curados. O vírus permanece em seu organismo. “As pessoas que controlam o vírus não estão curadas. O controlam, mas têm o vírus detectável, em um nível muito baixo. Provavelmente o que a vacina faz é controlar a reaparição de uma quantidade maior de vírus”, diz o doutor José Moltó, também coordenador do estudo. De fato, os pesquisadores explicam que já existe uma pequena porcentagem de pessoas infectadas (entre 1% e 2%) que são controladoras naturais do vírus por “seu background genético e a resposta imunológica que fazem”, e essa descoberta pode ampliar o número desse grupo. “Nossa pesquisa pretende evitar que os pacientes tenham que estar sob tratamento pelo resto de suas vidas. Esse estudo demonstra que com uma vacina terapêutica podemos reproduzir esse controle em pacientes que não têm a sorte de possuir esse background genético”, afirma Moltó.

“O conjunto do estudo é de pessoas muito selecionadas, voluntários detectados muito precocemente e que também começaram o tratamento muito precocemente”

Os cientistas frisam também que os pacientes do conjunto, ao possuírem infecções agudas, dispunham de um reservatório viral baixo, uma situação extrema que influenciou nos resultados do estudo. “A sensação que temos é que o fato de ter funcionado nesses cinco pacientes é uma combinação de pouca quantidade de vírus residual no reservatório e uma resposta potente à vacina. Para que possa ser extrapolado a todo mundo é preciso que as pessoas que não têm um reservatório viral baixo o baixem e que as pessoas que não responderam bem à vacina o façam, ou que a vacina seja mais potente”, diz Christian Brander, diretor científico do HIVACAT, o programa catalão para o desenvolvimento de uma vacina eficaz do HIV.

De qualquer modo, os cientistas se mostram prudentes e dizem que ainda existem muitas dúvidas por responder e linhas de pesquisa a explorar. Para começar porque não sabem se o efeito controlador é definitivo ou temporário. “Não sabemos se o vírus voltará e quanto tempo irá durar”, reconhece Mothe, que apresentou os resultados do teste nesta semana na Conferência de Retrovírus e Infecções Oportunistas (CROI, em inglês), realizada em Seattle. Chegar aos pacientes com infecção crônica é outro dos desafios. “Pode ser que para os pacientes com infecção crônica seja necessária uma terceira frente acrescentando anticorpos neutralizantes e imunoglobulinas modificadas que complementem a atividade da vacina e dos fármacos despertadores. Controlar o vírus é um grande passo, mas buscamos a sua cura e precisamos de uma prova de conceito que mostre que estamos impactando nos reservatórios e os estamos reduzindo”, afirma o doutor Bonaventura Clotet, diretor do Irsicaixa.

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