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Sérgio Sá Leitão: “O Brasil pode se tornar uma Hollywood do Hemisfério Sul”

Ex-secretário de Cultura do Rio, o jornalista é o nome do MinC para a diretoria da Ancine Alguns profissionais temem a indicação, que poderia mudar os rumos da atual política para o setor

Sérgio Sá Leitão, nomeado à diretoria da Ancine.
Sérgio Sá Leitão, nomeado à diretoria da Ancine.Divulgação

No início de fevereiro, a Agência Nacional de Cinema (Ancine), responsável por fomentar e regular a atividade do setor, recebeu do ministro da Cultura, Roberto Freire, a indicação do jornalista Sérgio Sá Leitão para assumir a vaga deixada por um de seus quatro diretores, a advogada Rosana Alcântara. A substituição na diretoria é vista como um movimento que anuncia ventos de mudança, algo que o audiovisual brasileiro acompanha de perto. Para alguns, a renovação pode vir a abalar a atual lógica de fomento, que garantiu o fortalecimento da área, resultando inclusive em uma presença crescente de filmes brasileiros em festivais internacionais, como o Festival de Cinema de Berlim.

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De Berlinale, com a presença de uma delegação brasileira expressiva, vem a constatação de que a discussão está subindo de tom. Nesta quarta-feira, o tradicional coquetel oferecido pela Embaixada Brasileira no evento congregou profissionais que aproveitaram o momento para divulgar um manifesto com críticas ao governo Temer e reivindicações para que permaneçam as políticas públicas que apoiaram o crescimento do audiovisual nacional nos últimos 15 anos.

O carioca Sá Leitão, que atuou como assessor na Ancine em 2007 e já foi secretário municipal do Rio de Janeiro, além presidente da RioFilme, deverá passar primeiro por uma sabatina no Senado Federal para efetivar sua nomeação. Por enquanto, tenta dissolver a resistência à sua candidatura, e se diz preparado para enfrentar “a burocracia e o intervencionismo” e também explorar o potencial brasileiro de se tornar “a Hollywood do Hemisfério Sul”. “Falo de uma Hollywood com diversidade e espaço para todos”, garante em entrevista ao EL PAÍS.

Pergunta. O que te motiva a entrar para a diretoria da Ancine?

Resposta. Saí da prefeitura do Rio de Janeiro em janeiro de 2015 e, desde então, tenho me dedicado à iniciativa privada. Mas trabalhei 12 anos na administração pública, seis em nível federal e os outros seis em nível municipal. Pude ver o quanto é possível contribuir para transformar a realidade para melhor. Quando surgiu o convite do ministro Roberto Freire, fiz uma reflexão, e o que me motivou a aceitá-lo foi a constatação de que nós temos hoje um contexto muito favorável ao desenvolvimento da indústria audiovisual brasileira. Por outro lado, há uma série de limitações e barreiras que impedem o desenvolvimento pleno da atividade. Acho que posso contribuir com a minha experiência e com minha visão, que é tanto do público como do privado, para tirar as travas e limitações, e fazer com que a nossa indústria consiga se desenvolver plenamente. Se resolvermos os entraves existentes, podemos viver nos próximos anos aqui no Brasil a era de ouro do audiovisual nacional. Podemos nos tornar uma espécie de Hollywood do hemisfério sul. O potencial está colocado. E falo de uma Hollywood com diversidade, com pluralidade, espaço para todos os tipos, estilos, gêneros e plataformas.

P. Há certa reação negativa à sua indicação no Rio de Janeiro, por conta de um suposto favorecimento de grandes produtoras nas linhas de financiamento na RioFilme, quando você presidia a empresa (ligada à Prefeitura do Rio que visa ao desenvolvimento do audiovisual carioca). Como você a encara?

R. É uma reação muito minoritária. Tenho recebido apoios e também sugestões e contribuições da maior parte do setor audiovisual brasileiro. O apoio é muito expressivo e significativo. Também penso que muito do que leio em relação às críticas feitas não têm muito fundamento. São ressalvas meramente ideológicas, que não encontram respaldo se houver um exame apurado do que foi a RioFilme – sobretudo comparando o antes com o depois da minha passagem pela empresa. Essas reações são muito mais motivadas por uma crítica que não é exatamente a mim, mas ao Governo, e têm a ver com o quadro político do país. Também há uma incompreensão ou desconhecimento dos resultados da RioFilme no período em que estive lá.

P. O setor audiovisual tem navegado à margem da crise econômica e política que o país atravessa. Como chegamos aí?

R. É preciso pensar sobre essa afirmação. De um lado, existe um contexto muito favorável, e ele é global. A indústria do entretenimento em geral e a do audiovisual em particular têm crescido na maior parte dos países em taxas acima da média do crescimento da economia global. O Brasil está dentro desse processo de profundas transformações – de grande impacto tecnológico, valorização do conteúdo, surgimento de novas plataformas e por aí vai. Mas acho que o setor tem sofrido, sim, os efeitos da crise econômica. Há uma redução do investimento privado, do patrocínio e uma desaceleração do crescimento do mercado de exibição – porque esse segmento está muito atrelado ao crescimento do mercado de shoppings. Ainda assim, é preciso destacar: houve medidas acertadas. Tomadas não apenas pela Ancine, ou seja, pelo Governo, mas também pelo Congresso. Portanto, são medidas tomadas pelo país, com o apoio do setor audiovisual. Um exemplo é a lei 12.485, que regula a TV paga no Brasil e trouxe reflexos positivos para a atividade. A criação do Fundo Setorial do Audiovisual também. É claro que o FSA pode ser muito aperfeiçoado, mas foi essencial.

"A Ancine é parte integrante de um todo, e ela precisa agir mais em sintonia com o restante do Governo"

P. Nosso ministério da Cultura foi quase fechado e por ele já passaram dois ministros. O que você opina sobre a visão do atual Governo sobre Cultura?

R. É preciso lembrar que nós tivemos uma série de problemas nos governos anteriores. Houve uma queda progressiva do orçamento do MinC, uma redução de sua capacidade administrativa e uma ausência absoluta de políticas e de iniciativas. Falo sobretudo sobre boa parte da gestão Dilma. Pelo que pude depreender das conversas que tive com o ministro e com outras pessoas do Governo, há hoje uma compreensão do papel estratégico da Cultura – que ela pode contribuir para o desenvolvimento do país e é fundamental na construção da nossa identidade nacional. O presidente Temer já se comprometeu com a renovação da Lei do Audiovisual, e o ministro Roberto Freire está trabalhando para aperfeiçoar a Lei Rouanet. O ministro me disse que vai viabilizar a transferência de recursos do Fundo Nacional de Cultura para os fundos municipais e estaduais. Acho que ele, com a experiência política, a visão abrangente e a capacidade de articulação que tem, é capaz de levar o MinC a um novo patamar. Nos últimos meses, houve uma experiência de aprendizagem, mas vejo que agora o trem está nos trilhos e indo na direção certa.

P. Se sua indicação for aprovada, quais serão seus primeiros passos?

R. Estou pensando em cinco linhas de atuação. Em primeiro lugar, acho fundamental que a agência esteja mais integrada com o Ministério da Cultura, a Secretaria do Audiovisual, o Conselho Superior de Cinema e outras instâncias governamentais. A Ancine é parte integrante de um todo, e ela precisa agir mais em sintonia com o restante do Governo. O segundo ponto é a desburocratização. Existe hoje um fardo muito grande sobre o setor, que é o excesso de burocracia e de intervenção na atividade audiovisual. Há um excesso de exigências que muitas vezes extrapolam o limite da lei. É preciso compreender que o excesso de burocracia representa custo para as empresas e, portanto, um obstáculo ao desenvolvimento pleno do setor.

P. O que você quer dizer com “extrapolam o limite da lei”?

R. Observei, em alguns momentos, que a Ancine tomou medidas que extrapolaram as previsões legais. Isso não é positivo. A participação do Estado numa atividade econômica tem que ser a mais leve e ágil possível. Tem que respeitar as dinâmicas dessas atividades e a autonomia dos entes privados. Sobretudo, respeitar as leis que garantem isso no país.

"Não há razão para preocupação. Não está na agenda de ninguém tomar medidas que prejudiquem esse ou aquele segmento. Ao contrário, minha visão é justamente a de que nós devemos pensar no setor como um todo"

P. Retomando as linhas de atuação que você prevê...

R. O terceiro aspecto é que a atividade de fomento da Ancine precisa ser ampliada, diversificada e aperfeiçoada, sobretudo para incorporar mais as dinâmicas, os modelos de negócio vigentes no setor e as especificidades de cada segmento. Outro ponto importantíssimo, na minha opinião, é que a agência, na sua atuação, respeite, promova e garanta a liberdade econômica e criativa dos agentes do setor e também a diversidade e a pluralidade. Tanto de modelos de negócio, como criativa. O quinto ponto é você estabelecer um processo de diálogo e transparência maior do que o que existe hoje. Isso passa, por exemplo, por valorizar essa instância que me parece fundamental, que é do Conselho Superior de Cinema, onde você tem representantes da sociedade civil, do Governo e do setor. Esse conselho, nos últimos anos, tornou-se uma instância assistente ou homologatória da Ancine, quando na verdade ele tem a função de apontar as diretrizes para a atuação da agência. Acho também que a Ancine deve ser muito mais transparente e empreender um processo de monitoramento, de avaliação e de divulgação permanente de seus resultados. Hoje é algo que infelizmente não existe.

P. Parte do setor que teme a renovação na Ancine, sobretudo porque vê perigo para o cinema mais autoral, de menor potencial financeiro. Em que medida essas pessoas têm razão para temer?

R. Acho que não há razão nenhuma para esse tipo de preocupação. Não está na agenda de ninguém tomar medidas que por ventura prejudiquem esse ou aquele segmento da produção audiovisual brasileira. Ao contrário, como disse antes, minha visão é justamente a de que nós devemos pensar no setor como um todo, levando em consideração as especificidades de cada segmento. Diante de qualquer mudança, muitas pessoas tendem a reagir de forma conservadora. Mas a renovação é importante, assim como na democracia a alternância de poder é fundamental. Também gostaria de lembrar que o cinema autoral sofre muito hoje com os problemas da política de audiovisual. Especialmente com burocracia e a ausência, muitas vezes, de fomento específico para esse segmento.

P. O professor Carlos Augusto Calil opinou em uma entrevista para o EL PAÍS que o Brasil caminha para uma “estatização” de seu cinema. Você concorda?

R. Não vejo dessa maneira. Tenho o maior respeito pelo Calil, gosto muito de boa parte das colocações dele, mas nesse caso eu discordo. Vejo um excesso de burocracia e de intervencionismo e acho que há uma cartorialização da atividade, e isso me preocupa muito. Também opino que há um excesso de dependência dos mecanismos de fomento. Eles deveriam ter uma lógica de estímulo, de apoio, e funcionar como uma espécie de empurrão para que progressivamente o setor possa crescer, se desenvolver e caminhar com as próprias pernas. Sou um crítico da situação atual, mas não chegaria ao ponto de dizer que há uma estatização.

P. O Brasil está este ano com 12 filmes no festival de Berlim e poderia embarcar agora em uma fase de boa visibilidade internacional. Quem, a seu ver, se beneficia disso?

R. O conjunto da atividade e o próprio país. É um fenômeno muito positivo. Precisamos tomar providências para que isso não seja pontual e, sim, algo permanente. A Ancine tomou medidas muito positivas na sua área internacional nos últimos anos, e elas tiveram impacto sobre isso. E, obviamente, esse reconhecimento se deve ao talento dos realizadores brasileiros.

P. Existe alguma chance, caso seja aprovado na sabatina do Senado, que você passe da diretoria à presidência da Ancine em maio, quando Manoel Rangel deixar o cargo?

R. Isso não foi colocado em nenhuma conversa. É uma questão da competência do ministro da Cultura e do presidente da República. O convite que me foi feito é para ser diretor da Ancine. E eu me coloco na posição de contribuir da melhor forma possível. Ser presidente não é algo que esteja colocado nesse momento.

P. Tecnicamente, isso é possível?

R. Tecnicamente, sim. Qualquer um dos atuais e próximos diretores poderá vir a ser o presidente da agência, uma vez que termine o mandato atual.

Plataformas de VOD, um desafio a encarar

Um dos temas mais debatidos pelo setor, de olho em seu futuro, é a regulação dos serviços de streaming e das plataformas de Video On Demand. À exemplo do que aconteceu com a TV a cabo, o esperado é que se aplique uma taxação às empresas que atuam na área, mas, para Sérgio Sá Leitão, a discussão a esse respeito ainda tem que amadurecer. "É uma das questões que estão colocadas na agenda. A minha visão é de que, sim, é necessário regulamentar esse segmento, levando em conta tanto os interesses privados como o público", diz o indicado à diretoria da Ancine. "Essa regulamentação tem que ser feita certamente via projeto de lei, não por uma Instrução Normativa da Ancine ou através de qualquer instrumento infralegal. Estou estudando o assunto e tenho visto que há diversos paradigmas internacionais que devem ser avaliados, porque vários países já fizeram isso. O Canadá, por exemplo", conclui.

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