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Temer elogia nova regra para terra indígena e Governo a revoga horas depois

Portaria editada por Ministério da Justiça havia sido criticada por especialistas e pelo MPF Nova versão de texto, suavizada, deve ser publicada nesta sexta-feira pela pasta

Moraes fala após reunião com indígenas em julho passado
Moraes fala após reunião com indígenas em julho passadoValter Campanato (Ag. Brasil)

Em um espaço de pouco mais de um dia, o Ministério da Justiça publicou uma portaria que alterava o sistema de demarcação de terras indígenas, ganhou apoio explícito do presidente Michel Temer pela mudança enquanto recebeu críticas dos especialistas. No fim, deu um passo atrás e revogou o primeiro texto e agora promete reeditar um novo, suavizado, nesta sexta.

Na prática, a portaria 68, que tinha sido publicada pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, no Diário Oficial nesta quarta-feira (18), criava uma nova estrutura no ministério que seria responsável por reavaliar processos de demarcação de terras, tirando força da Funai. Depois de repercussão negativa que a medida causou em movimentos indigenistas e no Ministério Público Federal, uma nota à imprensa na noite desta quinta-feira anunciou que a portaria ficava revogada e que seria substituída.

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Para Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), é difícil dizer se o movimento do Governo é melhor ou pior, já que o terreno de decisões está muito movediço. “É só lembrar que em dezembro passado um decreto presidencial extremamente danoso para a questão indígena vazou e depois o Governo voltou atrás, agora eles publicam uma portaria e um dia depois reeditam ela”, argumenta a advogada. Contudo, ela acredita que o caso representa um indiscutível recuo. “A portaria ficou simplificada e toda parte que foi mais duramente critica pela mídia nos últimos dois dias caiu”, diz. Na nota à imprensa, o Ministério da Justiça diz que “para evitar qualquer interpretação errônea” a nova portaria foi editada.

Para entender a questão, é necessário voltar algumas casas. De acordo com um decreto de 1996, assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e pelo então ministro da Justiça, Nelson Jobim, a Fundação Nacional do Índio (Funai) hoje é responsável por uma análise antropológica e multidisciplinar – com representantes também nas esferas estaduais e municipais – sobre as terras indígenas. Uma vez finalizada, a análise, que deve incluir apresentações de laudos e exposição das visões dos interessados na disputa, é encaminhada para a assinatura do ministro da Justiça e do presidente da República. Com a portaria 68, ficava criado um Grupo Técnico Especializado (GTE) que poderia reavaliar os processos e análises desenvolvidas pela Funai que estão em andamento.

Além da criação do GTE, a portaria ainda falava sobre a possibilidade de que as análises da Funai deveriam seguir o “cumprimento da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF)”. Para o secretário executivo do Conselho Indigienista Missionário (CIMI), Cleber Buzatto, isso era impossível já que não há uma jurisprudência vinculante sobre a questão. A avaliação que Buzatto fez é que isso significaria que o ministério estaria livre para adotar medidas políticas que casassem com teses ruralistas. A nova portaria, reeditada, contudo não fala dessa e de outras questões sensíveis. Muito mais enxuta, ela trata especificamente do GTE, que terá o objetivo de auxiliar o Ministro da Justiça a tomar uma das três decisões possíveis depois de receber o relatório da Funai em mãos: declarar os limites da terra, prescrever diligências que julgue necessário ou desaprovar o estudo, fundamentando essa última decisão no descumprimento de normas.

Segundo a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal, a portaria 68 era ilegal, feria a Constituição e “afrontava o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF), para o qual a demarcação de terra indígena é procedimento atribuído à Funai, que adota metodologia propriamente antropológica, sendo reservado ao Ministério da Justiça o papel de análise da legalidade do procedimento”. Para o coordenador da Câmara e sub procurador-geral da República, Luciano Mariz, “a portaria foi editada não para aperfeiçoar e acelerar o já tardio processo de identificação e demarcação de terras indígenas, mas para impedir sua continuidade”. Em reunião com o recém-empossado presidente da Funai, Antônio Fernandes Toninho Costa, Mariz disse que iria solicitar ao ministro Moraes a revogação da medida – o que, como foi visto, acabou acontecendo no final do dia.

“Que houve recuo, houve. É só dizer que a portaria 68 atropelava um decreto presidencial, o que não pode acontecer. Além disso, havia uma série de outras questões complicadas, como um artigo que dizia que era necessário que o território reunisse condições para o desenvolvimento da comunidade, quando a Constituição fala em sobrevivência física e cultural”, diz Batista, a advogada do Isa. Contudo, ela diz que perguntas ainda estão no ar. Uma delas é o motivo da criação do GTE. A nova portaria fala que o grupo será integrado por representantes da Funai, de consultoria jurídica, da Secretaria Especial de Direitos Humanos e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. “Tudo certo, mas quem integrará essa consultoria jurídica? E por que a Funai precisa integrar um Grupo para tratar de uma avaliação que foi elaborada por ela própria? Esses são entraves que tornam a questão ainda mais morosa”, argumenta Batista.

Temer: pacificar os conflitos indígenas

Nesta quinta-feira, antes da notícia que o ministério editaria uma nova medida, o presidente Michel Temer disse, após um evento com produtores rurais em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, que a portaria 68 visava reduzir “os conflitos enormes que existem nessa área”. Além disso, acrescentou que tudo estava embasado em “estudos contundentes à pacificação da questão das terras indígenas com os fazendeiros” e que tudo estava “sendo examinado, muito vagarosamente, com muito critério”. Buzatto, secretário executivo do CIMI, comentou as declarações dizendo que não houve qualquer tipo de discussão antes da publicação da portaria 68 e que ela era um indício claro de uma “concessão à bancada ruralista e demais segmentos do agronegócio”, uma vez que deixava uma via aberta para que grupos ligados aos ruralistas questionassem as análises elaboradas pela Funai.

Buzatto ainda argumentou que, ao contrário do que disse o presidente Temer, a situação conflituosa não iria ser pacificada, mas intensificada. “Os procedimentos administrativos sofreram redução drástica de andamento nos últimos anos e o resultado foi um aumento de conflitos. Ou seja, existe uma paralização que cria um gargalo e aumenta conflitos”, diz Buzatto. A portaria 68, segundo ele, criava “novos entraves, podendo inviabilizar demarcações de terras e eternizar conflitos”. Levantamento feito pelo ISA mostrava que 153 terras indígenas em fase de estudos ou já identificadas seriam diretamente afetadas caso a portaria fosse adiante. Desse total, 37 aguardam posicionamento do ministro da Justiça – processos que, segundo a instituição, deveriam levar em torno de cinco meses para serem concluídos e que estão, em média, há três anos sem encaminhamentos claros.

Questão indigenista na berlinda

A publicação, exclusão, e nova publicação da medida é mais um episódio que deixa especialistas e movimentos indigenistas apreensivos com o Governo Temer. Conforme disse ao jornal O Estado de S. Paulo, o subprocurador Mariz, por exemplo, acreditava que a portaria 68 era um reflexo do fato de o Governo não ter avançado com o decreto presidencial sobre o tema revelado em dezembro passado. “A divulgação antecipada do plano fez o Governo abortar o projeto. O que o Ministério da Justiça fez agora é tentar aproveitar parte daquele decreto presidencial para avançar no mesmo tema com uma portaria ministerial”, disse ao Estado.

Além disso, ainda em julho do ano passado, reportagem do EL PAÍS mostrou que o presidente já sinalizava a um grupo de deputados e senadores da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) que iria analisar a possibilidade de atender demandas do grupo, que eram focadas em três pontos chave: autorizar compra te terras brasileiras por estrangeiros, mudar regras de licenciamento ambiental e, por fim, alterar as regras de demarcação de áreas indígenas. No mesmo mês, Temer ainda aventou a possibilidade de nomear o general reformado Peternelli (PSC) para o cargo de presidência da Funai, o que foi recebido com repúdio por movimentos na época. Por fim, as idas e vindas da portaria só aumentam a lista de problemas envolvendo o Ministério da Justiça, comandado por Alexandre de Moraes, às voltas com a aguda crise do sistema prisional brasileiro.

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