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Em meio à trégua, água vira uma nova arma na guerra da Síria

Quatro milhões de habitantes ficam sem abastecimento após a explosão do principal duto da capital

Natalia Sancha

Ao final do sexto ano do conflito sírio, a água se tornou uma nova arma de guerra. Quatro milhões de pessoas ficaram sem uma só gota em Damasco depois da explosão proposital de dutos que abastecem 70% da cidade. A relativa calma na maioria das frentes de combate, resultado da trégua em vigor nas últimas semanas, é ofuscada pelo desafio diário de acessar serviços básicos transformados em alvos bélicos.

Sírios enchem galões com água numa fonte pública de Damasco, nesta terça.
Sírios enchem galões com água numa fonte pública de Damasco, nesta terça.LOUAI BESHARA (AFP)

“Estamos há seis dias seguidos sem uma só gota d’água, o que se soma aos constantes apagões. Retrocedemos na história para viver como viviam nossos antepassados”, lamenta, por telefone, Nisrine F., mãe de quatro filhos, que vivia na periferia de Damasco e agora é uma refugiada no centro da capital. A necessidade de administrar com cuidado os escassos recursos domésticos tem levado essa dona de casa a assar seu próprio pão, a eliminar a carne da dieta familiar, a esquentar a cama dos filhos com pedras quentes, a costurar suas próprias roupas e a compartilhar o aluguel de uma casa humilde com outras três famílias. Nas últimas duas semanas, além disso, ela precisa percorrer as ruas carregando galões de plástico em busca de água, numa nova realidade onde lavar os pratos ou tomar uma ducha viraram luxos para gente rica.

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Segundo a ONU, quase 15 milhões de pessoas sofrem escassez de água em toda a Síria, sendo mais de 600.000 delas em Aleppo. Isso obriga as famílias a investirem até 25% dos seus recursos no abastecimento hídrico. “Quem tem menos condições tenta encher suas garrafas nas fontes dos parques, mesmo não sendo água potável, e quem pode compra dos caminhões-pipa”, diz, também por telefone, outro morador de Damasco, chamado Ahmed M. Tanto o Governo sírio como as organizações humanitárias internacionais começaram a restaurar poços e a distribuir água com caminhões-pipa aos habitantes da capital, a metade deles refugiados.

No último dia 23, foram detonados os dutos que transportavam a água a partir do rio Barada, que fica 25 quilômetros a noroeste do centro e é a principal fonte de abastecimento. Como em tudo que acontece na guerra síria, insurgentes e forças leais ao regime se acusam mutuamente pela sabotagem. A região do vale do Barada permanece sob o controle de grupos rebeldes e de jihadistas da facção Fattah al Sham (outrora uma filial da Al Qaeda), que em julho já haviam explodido várias tubulações, secando as torneiras de Damasco.

Os insurgentes do vale, por sua vez, estão há meses cercados pelas tropas regulares sírias e por seus aliados, como a milícia libanesa Hezbollah. Apesar de a água ser um elemento novo no conflito, a fome como arma de guerra se tornou algo habitual, deixando quase um milhão de sírios sob risco de inanição nos 56 cercos que os vários grupos mantêm no país. Em nota divulgada na terça-feira, diversas facções insurgentes da região, junto com os agentes humanitários dos Capacetes Brancos, pediram a declaração de um cessar-fogo. O documento exige o acesso da ajuda humanitária em troca da autorização para que os especialistas reparem a infraestrutura hídrica, ou seja, uma troca de “água por comida”. O acordo, no entanto, não se materializou, e os confrontos recrudesceram, provocando a fuga de mais 1.300 pessoas, segundo cifras mencionadas pela agência estatal de notícias SANA.

Transcorrida uma semana de trégua, os sírios fazem uma leitura menos otimista do acordo selado entre Turquia e Rússia, que prevê também uma reunião entre insurgentes e representantes do regime sírio no final deste mês no Cazaquistão. O frágil cessar-fogo efetivamente silenciou obuses e bombardeiros, estancando a contagem destes seis anos em 312.000 mortos, mas as condições de vida dos civis se deterioram rapidamente. O impasse bélico veio progressivamente eliminando todos os direitos humanos básicos, ao transformar usinas elétricas, hospitais, padarias e escolas em alvos militares. O vale do Barada simboliza uma escalada a mais na erosão da humanidade em um conflito onde batalhas como esta não são travadas apenas com balas, e sim com torneiras secas e pratos vazios.

Como consequência, Nisrine e seus concidadãos de Damasco entraram em 2017 incorporando um novo desafio à gincana diária da sobrevivência na principal cidade do país.

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