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Quando Papai Noel foi inimigo de Deus

A Igreja protestava contra a paganização do Natal e o crescente protagonismo de Santa Claus

Guillermo Altares
Dois artistas de rua vestidos de Papai Noel em Estrasburgo (França).
Dois artistas de rua vestidos de Papai Noel em Estrasburgo (França).PATRICK HERTZOG (AFP)

No Natal de 1951 comemorou-se o último auto de fé na Europa. A fogueira se acendeu em frente a catedral de Dijon, uma bela cidade do norte da França, apesar de a vítima não ser nem um herege nem uma bruxa, mas uma criatura que aos poucos ia se impondo no espírito do continente: Papai Noel. O grande antropólogo francês Claude Levi-Strauss escreveu um texto sobre aquela estranha cerimônia intitulado ‘O suplício de Papai Noel’, resgatado este ano pela editora francesa Seuil em um pequeno volume, que em castelhano já existe em uma edição anterior da editora El Taller, de Mario Muchnik. Muitas das reflexões do sábio francês sobre a mudança de costume nessas datas, do recolhimento religioso à festa do consumo, são mais válidas atualmente do que na época.

Fachada de Point de Vue com o auto de fé do Papai Noel.
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A ideia de queimar Santa Claus em público em 23 de dezembro de 1951 veio de uma estranha união entre as igrejas católica e luterana como “protesto pela crescente paganização das festas”, segundo a crônica produzida na época pelo jornal France Soir. As imagens da época, que podem ser encontradas na Internet, são borradas e fantasmagóricas, em um preto e branco que pertence, sem dúvida, a tempos pretéritos.

“Poucas vezes o etnólogo tem a oportunidade de observar, em sua própria sociedade, o crescimento súbito de um rito e até de um culto”, escreveu o autor de Tristes Trópicos e um dos intelectuais franceses mais lúcidos e lidos do século XX. Sua conclusão é a de que a Igreja tinha muitos motivos para se preocupar com a mudança profunda que já então as festas natalinas estavam vivendo, que “alcançaram na França uma importância que nunca tinham tido antes da Segunda Guerra Mundial”. E lhe dá razão no fundo, mas não na forma: “A Igreja não se engana quando denúncia que na crença em Papai Noel está o bastião mais sólido e mais ativo do paganismo no homem moderno”, afirmou.

A comemoração do Natal é muito antiga e alguns costumes se perdem na noite dos tempos: apesar de as primeiras referências ao abeto decorado estarem em textos alemães do século XVII, o culto às árvores remonta à época do paganismo, anterior até aos romanos, cuja festa principal, as Saturnálias, inspirou a nossa. O visco, por exemplo, tem sua origem nos druidas. Todos esses costumes foram adaptados pela tradição cristã que comemora um dos acontecimentos mais importantes para essa religião: o nascimento de Jesus. A figura do Papai Noel também se perde na noite da história: é um mito relacionado ao solstício de inverno (em 21 de dezembro) que se cristianizou por meio da figura de São Nicolau e se popularizou em todo o mundo com seu traje vermelho depois de um anúncio da Coca-Cola.

Depois dessa revisão histórica, Lévi-Strauss relata um momento crucial quando o Natal, esquecido durante a penúria da Segunda Guerra Mundial, torna a ocupar um lugar muito importante na sociedade, mas com novas figuras que substituem os antigos deuses. O antropólogo defende que o papel alcançado por Papai Noel ao longo dos anos “não pode se dever apenas ao prestígio dos Estados Unidos” (muito grande na época, em pleno Plano Marshall e depois da libertação da Europa). Segundo seu ponto de vista, o sucesso desse idoso bonachão se deve a que “nas sociedades os ritos de iniciação têm uma função prática”. Nesse caso, a chantagem a que são submetidas as crianças que receberam presentes em troca de seu bom comportamento durante o ano.

Outro livro essencial para entender a forma como celebramos atualmente essas festas também surgiu em um momento de crise. Exatamente quando as comemorações tinham caído em certo esquecimento, Charles Dickens publicou um de seus relatos mais conhecidos: Conto de Natal. Constantemente reeditado, traduzido e adaptado —inesquecível a versão radiofônica feita pela rede SER em 2013 e este ano repetida com outra adaptada por Eduardo Mendoza, a ser veiculada em 25 de dezembro—, muitos historiadores consideram Dickens como o homem que inventou o Natal ou, pelo menos, que lhe deu a força que tem atualmente.

O homem que inventou o Natal

O autor norte-americano Les Standiford escreveu em 2008 um livro intitulado exatamente assim The Man Who Invented Christmas: How Charles Dickens’ A Christmas Carol Rescued His Career and Revived our Holiday Spirits (O homem que inventou o Natal: como o Conto de Natal de Charles Dickens resgatou sua carreira e reviveu nosso espírito festivo). “Não havia cartões de Natal na Inglaterra de 1843, não havia árvores de Natal nas residências reais, as empresas não fechavam por uma semana, nem se celebravam tantas missas à meia-noite. Para a igreja anglicana, todo o tema do Natal tinha um gosto distante de paganismo”, escreve Standiford no livro, do qual está sendo preparada uma versão cinematográfica dirigida por Bharat Nalluri e protagonizada por Dan Stevens como Dickens e Christopher Plummer como Scrooge.

O livro de Dickens fez um sucesso gigantesco. Como escreveu seu contemporâneo William Makepeace Thackeray, autor de duas obras míticas, A feira das vaidades e Barry Lyndon, “desencadeou uma onda de hospitalidade em toda a Inglaterra, foi a causa de se acender centenas de fogos junto às árvores de Natal, de uma terrível matança de perus de Natal”.

Não se pode dizer que Dickens e seus fantasmas inventaram o Natal, de fato não é a única obra sobre o assunto publicada na primeira parte do século XIX, mas deram um impulso à festa que, como no caso do Papai Noel queimado de Dijon, tinha algo de pagão. Em ambos os casos, as comemorações tinham sumido para ressuscitar em períodos de mudança —no século XIX ocorreu a explosão econômica da primeira revolução industrial.

Esses dois livros tão diferentes refletem até que ponto o pagão e o religioso, o sagrado e o profano, estão unidos nessas festas que nunca conseguiram se separar de sua origem mais remota, o sol invencível. Depois de meses de dias cada vez mais curtos e noites intermináveis, o solstício de inverno marca o princípio de um novo tempo. Nenhuma outra festa reflete uma mistura tão profunda e remota de costumes e ritos, aos quais vão se incorporando todo tipo de novos mitos, desde fantasmas até estranhos autos de fé.

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