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Coluna
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“Veremos a ressurreição das borboletas dissecadas”

Vivo este Natal no Brasil dividido e envergonhado pelos escândalos de quem deveria nos dar exemplo

Juan Arias
Natal em Copacabana.
Natal em Copacabana.Marcelo Sayao (EFE)

Vivi, na Espanha, Natais em guerra, em que as canções natalinas e o torrone se entrelaçavam com os tiros dos fuzis assassinando, à beira da estrada, quem não pensava como eles.

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Vivi Natais sem brinquedos.

Vivi Natais de fome e de abundância, de nascimentos e de lutos. E vivo hoje este Natal do Brasil em chamas, dividido e envergonhado pelos escândalos daqueles que nos deveriam dar o exemplo.

Este é também o dramático Natal do inferno da Síria e de seus refugiados, onde as famílias pedem permissão para matar suas filhas para que não acabem estupradas pelo fanatismo e a loucura.

Se hoje pudesse pedir um presente de Natal iria querer que fosse o de saber influenciar as pessoas para que, como no canto essencial de Francisco de Assis:

“Ali onde houver ódio, que eu leve o amor

Onde houver ofensa, que eu leve o perdão,

Onde houver discórdia, que eu leve a união

Onde houver erro, que eu leve a verdade”

Há quem se refugie nos deuses para se sentir seguro à beira do abismo e quem busque console nos baús secretos da alma.

Em momentos de dor todas as muletas são válidas.

Eu, que não tenho deuses, recorri aos poetas para buscar um plus de esperança contra o assombro neste Natal amargo para os milhões de brasileiros que sofrem o peso do desemprego, para os professores que não recebem seus salários; para os ainda sem teto; para os perseguidos por serem diferentes; para os que farão fila nos hospitais públicos sem dinheiro porque os corruptos o levaram.

São os poetas quem melhor sabe captar e expressar o definhar das esperanças e a ressurreição do que parecia perdido.

São eles que sabem transformar as pedras em pães e descobrir esperança até nos silêncios que atemorizam.

Nada tão profundamente triste e ao mesmo tempo tão esperançoso como o grito dos poetas transformado em oração.

Eu quis escolher como presente de Natal, para mim e para meus amigos, versos de meu poeta favorito, Federico García Lorca, de quem há 80 anos, completados agora, os tiros da ideologia e o ódio aos diferentes arrancaram sua vida

Lorca viveu o melhor e o pior de seu tempo. Escreveu versos para o Natal, às vezes ternos, para as crianças, e lúgubres profecias para os adultos. E acreditou, até o final, na esperança de ver “brotar rosas de nossas línguas”.

Não fechou os olhos diante da tirania, nunca escondeu o medo e o desencanto que lhe produzia seu país dividido e ensanguentado. E pedia em seus versos estar sempre alerta, como sentinelas do castelo:

“Não dorme ninguém,

Mas se alguém tem excesso de musgo nas têmporas,

abram os alçapões para que vejam, sob a lua, as taças falsas, o veneno e a caveira dos teatros”

Estes versos de Lorca hoje não lhes lembram nada?

Não é fechando os olhos para negar a realidade que poderemos ajudar a recuperar o que foi perdido. E, ao mesmo tempo, nosso olhar tem de estar aberto para intuir a hora em que o relógio anuncie dias melhores.

Lorca escrevia também estes versos de esperança:

“Veremos a ressurreição das borboletas dissecadas,

e mesmo andando por uma paisagem de esponjas cinzentas

e de barcos mortos,

veremos brilhar o anel

e brotar rosas de nossa língua”.

Também hoje, para conseguir que nasçam rosas de nossas bocas, precisamos atravessar desertos de “esponjas cinzentas e barcos mortos”.

O russo Joseph Brodsky, Nobel de literatura, tem também um verso natalino denso e metafórico que espero possa ser profético para este amado Brasil de hoje:

“A escuridão restaura,

o que a luz não pode reparar”.

Feliz Natal, sobretudo para quem não poderá assim chamá-lo. Que também eles possam desfrutar um dia da “ressurreição das borboletas dissecadas”.

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