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Câmara faz ofensiva para rever decisão histórica do Supremo sobre aborto

Na mesma noite em que o STF determina que aborto até o terceiro mês não é crime, deputados instalam comissão para rever a decisão

Mulheres pela descriminalização do aborto fazem ato no Rio, em março deste ano.
Mulheres pela descriminalização do aborto fazem ato no Rio, em março deste ano.Fernando Frazão (Ag. Brasil)

O Supremo Tribunal Federal decidiu na terça-feira que praticar aborto até os três primeiros meses da gestação não é crime. A decisão foi dada a partir de um caso específico, suspendendo a prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina de aborto no Rio de Janeiro. O caso foi parar no STF, onde o ministro Marco Aurélio Mello votou pela liberdade dos funcionários por entender que não cabia prisão preventiva neste caso. Mas o ministro Luís Roberto Barroso pediu mais tempo para analisar o processo e o devolveu nesta terça com um voto mais ampliado, que pode abrir caminho para que outras decisões no sentido de descriminalizar o aborto sejam tomadas pela Justiça.

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Um pequeno passo, simbólico e significativo, para os movimentos feministas que há décadas lutam para fazer valer esse direito no Brasil. 

O debate, porém, toca num ponto nevrálgico de um país que aumenta o número de parlamentares conservadores e onde o aborto ainda é um tabu. Na mesma noite da decisão do STF, a Câmara dos Deputados mostrou que pretende trabalhar para rever  a decisão do Supremo. Na tribuna da Câmara, onde acontecia a votação das dez medidas contra a corrupção, deputados - especialmente os que formam a bancada evangélica - aproveitaram os holofotes para protestar contra o Supremo. O deputado Evandro Gussi, líder do PV, afirmou que a decisão do STF revoga o Código Penal, que só admite a interrupção da gravidez em caso de estupro e quando a mãe corre risco de morte. “Revogar o Código Penal, como foi feito, trata-se de um grande atentado ao Estado de direito. O aborto é um crime abominável porque ceifa a vida de um inocente”, disse.

Cedendo à pressão de um Congresso de maioria conservadora, e de olho nas eleições para a presidência da Câmara em fevereiro, o presidente da Casa, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou, na mesma noite, a instalação de uma comissão especial no intuito de rever a decisão do Supremo. “Informo ao plenário que eu já tinha conversado desse assunto com alguns líderes que, do meu ponto de vista - e vou exercer o poder da presidência - toda vez que nós entendermos que o Supremo legisla no lugar da Câmara dos Deputados ou do Congresso Nacional, nós deveríamos responder ou ratificando ou retificando a decisão do Supremo, como a de hoje", disse Maia.

Mas segundo Ivar Hartmann, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio, a Câmara não pode revogar uma decisão do Supremo. "Os deputados podem produzir uma alteração na lei ou na Constituição, mudando aquilo que o Supremo usou como fundamento da sua decisão", explica. "Mas rever uma decisão do Supremo, eles não podem".

O voto do ministro Luís Roberto Barroso, que alcançou a maioria dos ministros da primeira turma da corte, é baseado no argumento de que a criminalização do aborto é incompatível com diversos direitos fundamentais. Dentre eles, os direitos sexuais e reprodutivos e a autonomia da mulher, a integridade física e psíquica da gestante e o princípio da igualdade, "já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria", segundo o voto do ministro (leia mais abaixo).

Hartmann explica que esses princípios usados pelo ministro Barroso fazem parte de cláusulas da Constituição que não podem ser mexidas. "O direito fundamental à liberdade é uma parte da Constituição que não pode ser alterada", explica. "Os deputados até podem colocar algo no Código Penal que explicite que o aborto é crime mesmo quando praticado nos três primeiros meses da gestação", diz o professor. Mas, de acordo com ele, o Congresso não poderá mudar os princípios argumentativos utilizados pelo ministro Barroso.

PEC disfarçada

A contraofensiva da Câmara foi imediata à decisão no STF. A comissão de deputados foi criada já na madrugada desta quarta-feira, durante a sessão na Casa. Será composta de 33 membros que discutirão a PEC 58/2011, que na verdade trata de ampliar a licença-maternidade para mães de bebês prematuros. Originalmente, o texto dessa Proposta não menciona nada sobre a criminalização do aborto. Mas, como a discussão sobre o tema foi levantada pela decisão do Supremo, os deputados aproveitarão essa comissão para apresentar uma emenda ou substitutivo para essa proposta que trate do assunto. É o que se chama de 'jabuti', quando um tema estranho à proposta original, é inserido num projeto de modo que possa passar longe dos holofotes.

“Há uma visão idealizada em torno da experiência da maternidade, que, na prática, pode constituir um fardo para algumas mulheres. Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não”, Luís Roberto Barroso, ministro do STF

O professor Ivar Hartmann ressalta que o legislador não poderá decidir se dá ou não o direito ao aborto para as mulheres. "Isso faz parte de garantias mínimas que o legislador não tem competência para retirar das pessoas. Especialmente quando se fala de proteção a minorias, e as mulheres no Brasil formam um grupo historicamente reprimido ou que tiveram acessos negados a bens da sociedade", diz. "E inclusive a falta de representatividade do Congresso é um motivo a mais para que o Supremo proteja as mulheres".

Mas essa não é a única ofensiva do Congresso à descriminalização do aborto. Uma discussão recente foi sobre o PL 5069, que dificulta o atendimento a vítimas de abuso sexual, colocando, inclusive, a prescrição da pílula do dia seguinte em xeque. O projeto tramitou no ano passado e sofreu forte reação nas ruas. Foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, mas não foi a votação no plenário. Como esse, mais de 30 projetos tramitam sobre o assunto. Mais da metade deles preveem endurecer a punição para o aborto, segundo levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo.

Congresso x Supremo

Essa não é a primeira vez que o Supremo toma uma decisão de cunho progressista e o Congresso tenta retroceder depois. Em 2011, os ministros do STF aprovaram, por unanimidade, que as uniões homoafetivas deveriam ter os mesmos direitos que uniões heterossexuais. Desde então, casais homossexuais têm direitos como herança, benefícios da Previdência, inclusão como dependentes em plano de saúde e adoção, dentre outros direitos. Mas, desde 2013 tramita na Câmara o chamado Estatuto da Família, que define como entidade familiar apenas o “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Ou seja, exclui por completo a possibilidade de união entre pessoas do mesmo sexo perante à lei.

Foi no Supremo também que se decidiu, em 2012, que aborto de fetos sem cérebro (anencéfalos) não é crime. Na época, deputados também foram à tribuna incomodados com a "intromissão" do STF na legislatura. "O que ocorre nesse julgamento, mais uma vez, lamentavelmente, em função do ativismo judicial que o Supremo vem praticando, é uma usurpação de competência. Essa matéria é de competência do Parlamento e não do Judiciário", criticou o deputado João Campos (PSDB-GO), então presidente da Frente Parlamentar Evangélica.

Apesar das contraofensivas, o Supremo continua debatendo temas tabus para a sociedade brasileira enquanto o Congresso se opõe. Na semana que vem, está marcada no STF o julgamento da ação que pede a liberação do aborto em gestantes infectadas pelo vírus da zika. A questão ganhou importância desde o ano passado, quando o Brasil viveu um surto da doença que pode causar microcefalia em bebês. Na época, a ONU chegou a defender o acesso ao aborto nos países atingidos pela doença.

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