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gastronomia
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

A torta da sua avó era mesmo a melhor do mundo?

Não digo que a comida de um ente querido seja inferior em termos gastronômicos. Só defendo diferenciar as emoções

Uma torta de palmito de preparação caseira (veja abaixo a receita).
Uma torta de palmito de preparação caseira (veja abaixo a receita).

Tenho na memória cenas vivas e frescas de meu pai fazendo a barba na pia do banheiro de casa. Eu devia ter uns cinco ou seis anos, e ele me parecia um homem altíssimo, concentrado no nobre ato de manejar a lâmina no rosto coberto de espuma. Meu pai tinha apenas 1,63m e, no entanto, as reminiscências daquela época, naquele lugar, faziam dele um gigante. Mas o tempo, o amadurecimento, a realidade, enfim, puderam colocar os tamanhos nas suas devidas proporções. Supondo que se não tivéssemos nos visto mais, talvez eu guardasse na lembrança a imagem de um homem grande como um jogador da NBA.

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Creio que mecanismo semelhante aconteça em outras situações, e permeie em especial nossa relação com a comida. Como? Manifestando-se por vezes na nostalgia de receitas, pratos, sabores em geral. Acho que todos conhecemos pessoas (quando não, nós mesmos) que garantem nunca ter havido um bolo de chocolate como o da sua mãe. Ou que o molho de tomate da sua avó era o melhor do mundo, imbatível, superior ao de qualquer cozinheiro profissional. Quem haverá de discutir? Muitos deles talvez tenham sido de fato bons, quando não sensacionais (e vamos lembrar, eles refletiam os recursos e conhecimentos de sua época). Outros, tornaram-se bons por um contexto de emoção, de saudade.

Se eu recuar ao máximo que a consciência alcança, chegarei à minha experiência ou memória gustativa mais antiga e marcante: as peles e gordurinhas que grudavam na assadeira usada pela minha avó nos almoços de domingo. Aquele gosto de arrostito, como dizem os italianos, de queimado, era o melhor momento da refeição. Todo mundo já havia terminado de comer (lombo de porco e frango, mais comumente) e eu ia até a cozinha, pegava a assadeira, uma faca pontiaguda – ­ naquela época, os pais não eram tão paranoicos com acidentes domésticos – e raspava tudo o que estava grudado no fundo. Era ótimo: untuoso, algo amargo, bem salgadinho, dominava as papilas.

Não preciso tratar essa excêntrica gulodice infantil como se fosse a defesa de uma iguaria familiar. Antes de tudo, para além do gostoso trivial ítalo-ibero-paulista que minha avó preparava, aquele era um “defeito especial” culinário. Explico. Se a assadeira fosse de algum material moderno, antiaderente, eu não disporia daquele fundinho para futucar e morder tal e qual uma porção de snacks crocantes. E tinha valor porque era a comida da matriarca; era eu descobrindo sabores; e havia todo um contexto de emoções e de exclusividade (ninguém dava bola para o arrostito, só eu).

As coisas que existiam no passado costumam adquirir, com os anos, qualidades que extrapolam critérios mais objetivos. Levando a ideia ao extremo, podemos dizer que esse passado mítico, esse in illo tempore, parecia melhor simplesmente porque éramos novos e a finitude anda soava distante, quem sabe improvável. Era tudo realmente mais legal? Sim e não. Certa vez, conversando com um dos maiores chefs espanhóis, Quique Dacosta, perguntei sobre sua paella preferida (ele é um expert em arroz). Ele respondeu: “A da minha mãe. Embora, tecnicamente, fosse um desastre”. Faz todo sentido. Não há como competir com as receitas do afeto, mesmo quando as execuções e os ingredientes deixam a desejar. Especialmente quando não temos mais como reencontrar aqueles velhos sabores.

Extrapolando a cozinha caseira, deparo com outros tipos de sensação quando retorno a restaurantes antigos, que visitei ao longo dos anos, em fases diversas da vida. Não raro, fico curioso e ressabiado ao pedir um prato “velho conhecido”. Será que ele estaria como sempre? E, mais ainda: diante de um eventual estranhamento, quem estaria diferente, quem teria mudado? Eu ou o prato?

Estabelecimentos com grande capacidade de manter padrões (são raros e sempre admiráveis), por outro lado, detêm o poder, ao menos para mim, de funcionar como um espelho. Porque você cresce, amadurece e, ali no restaurante – que permanece o mesmo – é que percebe as marcas que o tempo deixou. Capto essa vibração em endereços paulistanos como o Tatini, o Casserole, o Rubaiyat da Alameda Santos. E retomei esse sentimento no recentemente reaberto Ca’d’Oro, de um outro jeito: mudamos os dois, desde o último encontro, em 2009. Mas nos reconhecemos.

Existe, por outro lado, uma constante dualidade entre a vontade de rever e o medo de macular memórias agradáveis. No meu caso, isso ocorre especialmente quando não estou muito seguro das reais qualidades de um objeto. Por exemplo: posso assistir muitas vezes ao Poderoso Chefão (o 1 e o 2, em especial), e repetidamente atestar suas virtudes, capazes de resistir às décadas e às tendências. Mas tenho um pé atrás com obras que, em seu tempo, foram impactantes – e que, no entanto, talvez mereçam permanecer só na lembrança. Como, digamos, Estranhos no paraíso, que parecia tão incrível porque o momento (cultural e pessoal) também o era.

Não estou afirmando que a comida da tia, do pai, da madrinha, de qual ente querido for, será sempre inferior gastronomicamente, quando escrutinada sem benevolência afetiva (e eu lá sou doido de querer sem linchado nas redes sociais?). Apenas defendo uma diferenciação de emoções. Depois de anos comendo profissionalmente, posso me debruçar sobre uma receita do caderninho da minha avó e, de forma divertida, constatar que ela contém quilos de açúcar, margarina e outras coisas mais que não entram na minha geladeira. E, ainda assim, me recordar com carinho e bonomia.

Por outro lado, posso reconhecer que, para além do corporativismo familiar, minha mãe faz uma torta de palmito de respeito. É um quitute muito bem preparado, que poderia ser vendido profissionalmente, sem sustos. O salgado, além de gostoso, tem constância. E senso de regularidade, nesses casos, é um porto seguro. O curioso é que, volta e meia, em instantes de dúvida e inquietação, ela mexe na fórmula. Altera a gordura, acrescenta um ovo... E, claro, filhos e netos percebem na hora: “Você mudou a receita, não?”. Para que todos entendam do que estou falando, coloco por escrito (ela faz a olho) o passo a passo da torta (veja a receita abaixo).

No fundo, o que queremos é ter alguma certeza, alguma garantia de acolhimento. É poder experimentar, variar, mas, eventualmente (ou frequentemente), contar com a chance de, numa garfada, reavivar a lembrança do que fomos. E a confirmação do que somos. Nem que, para isso, seja necessário botar aquele tempero, aquele molho, aquele chantilly na realidade...

Torta de palmito

Transcrição da receita de Ruth Camargo

Massa

- 400g de farinha de trigo;
- 100g de manteiga;
- 100g de banha de porco;
- 90ml de água;
- 4g de sal;
- 1 gema de ovo para pincelar.

Recheio

- 1 vidro grande de palmito em conserva (ou palmito fresco, cerca de 6 toletes);
- 1 cebola picada;
- 1 tomate (sem pele, picado);
- Ervilhas;
- Azeitonas (sem caroço);
- 2 ovos cozidos (gema dura);
- 1 xícara de leite (240 ml);
- 1 colher (sopa) de farinha de trigo;
- Salsinha picada;
- Sal e pimenta-do-reino a gosto.

Modo de preparar

Massa

Num tigela, junte a manteiga e a banha (ambas geladas e cortadas em pedaços pequenos) com a farinha e o sal.

Primeiro, faça uma farofa com a mistura. Depois, acrescente a água aos poucos, e vá agregando a massa, até dar liga. Quando estiver bem amalgamada e mais homogênea, forme uma bola bem firme (não sove a massa, pois a ideia é que ela fique quebradiça).

Embrulhe em filme plástico e leve à geladeira, por uma hora.

Recheio

Numa panela, refogue a cebola no azeite, até murchar.

Separe os toletes de palmito, veja se não há pedaços duros. Pique e junte à panela, com o tomate já cortado, as ervilhas e as azeitonas. Mexa bem, refogue em fogo médio, até o palmito amolecer (cerca de cinco minutos).

Espalhe a farinha, acrescente o leite, mexa bem, por mais cinco minutos, para dar liga (e sem deixar pelotas de farinha). O recheio deve ficar cremoso, nem líquido demais, nem seco.

Acerte o sal e a pimenta-do-reino, acrescente os ovos, picados, misture. Finalize com salsinha picada e deixe esfriar.

Pré-aqueça o forno a 200 graus (temperatura média-alta).

Montagem

Separe um assadeira redonda, com cerca de 25 a 30 cm de diâmetro. Pode ser com fundo removível, por exemplo.

Tire a massa da geladeira, corte-a em dois pedaços (um deve ser um pouco maior, para o fundo; outro, menor, para cobrir a torta).

Abra a massa com um rolo (se facilitar, faça isso entre duas folhas de plástico), como se fosse um disco de pizza.

Transporte a massa aberta para a assadeira (com a ajuda do rolo, ou erguendo pelo próprio plástico). Aperte-a contra ao fundo, com as mãos, de modo que ela cubra toda a superfície e também as bordas, deixando com uns 3 ou 4 mm de espessura. Retire os excessos de massa (e guarde, para tapar eventuais buracos ou até fazer uma decoração na cobertura).

Espalhe o recheio, já frio, sobre a assadeira já revestida pela primeira parte da massa. Deixe uma camada homogênea de recheio, bem distribuída.

Abra outro disco com o restante da massa. Cubra a assadeira, feche bem, vedando as emendas. (Faça um pequeno furo no topo, para permitir a saída do vapor durante a cocção no forno).

Pincele com a gema de ovo e coloque para assar, por 40 minutos, até dourar bem.

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