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A literatura experimental não foi inventada pela internet

Vários livros retomam a OuLiPo, um laboratório literário formado nos anos sessenta por Raymond Queneau, Georges Perec e Italo Calvino, entre outros

Álex Vicente
Integrantes da OuLiPo em fotografia de 1975, em Boulogne (França).
Integrantes da OuLiPo em fotografia de 1975, em Boulogne (França).

Quase tudo na vida de Pablo Martín Sánchez girou em torno do OuLiPo. Nascido há 39 anos perto de Reus, na Espanha, ele cresceu lendo com devoção Georges Perec, Raymond Queneau e Ítalo Calvino, os três membros mais emblemáticos da “oficina de literatura potencial”, fundada na França quase provinciana de 1960. Mais tarde, dedicou sua tese de doutorado às práticas intertextuais do grupo, participou de seus seminários de verão na localidade francesa de Bourges e estruturou com o uso de métodos oulipianos os dois romances que escreveu até agora, El anarquista que se llamaba como yo [O anarquista que se chamava como eu] e o recém-lançado Tuyo es el mañana [O amanhã é seu], ambos pela editora Acantilado.

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Ao receber em 2014 um telefonema informando que ele tinha sido escolhido para ser o primeiro membro espanhol da história do grupo, ficou orgulhoso. Mas, antes de aceitar o convite, tirou alguns dias para refletir. “Entendi que não poderia dizer não, embora, no fundo, desejava fazer isso”, admite Martin Sánchez. “Tornar-se um oulipiano é uma honra, mas significa ter mais responsabilidade e um pouco menos de liberdade na escolha dos seus caminhos”, confessa. Por fim, acabou por considerar que aquilo não significaria um problema. “Como ocorre com esses limites que nós mesmos adotamos ao escrever, compreendi que seria um tipo de restrição que me permitiria atingir a liberdade absoluta”, diz o romancista.

Anne Garréta: “Se afastaram do projeto inicial. Há uma tendência a repetir fórmulas do passado”

O limite, a restrição, o obstáculo. É impossível definir o que é a OuLiPo sem passar por essas palavras. Os autores pertencentes ao grupo se impõem regras para escrever: abrir mão de uma das vogais em um romance, substituir os substantivos de um verso por outros localizados perto deles no dicionário, inspirar-se na álgebra de Boole para construir um poema. Não por acaso, o fundador do grupo, ao lado de Raymond Queneau, François Le Lionnais, além de enxadrista e patafísico, era também matemático, como ainda o são vários de seus atuais integrantes: a inspiração nas estruturas abstratas do cálculo nunca voa longe demais. Sua missão original consistiu em inventar diferentes tipos de restrições, ou resgatar do passado algumas já esquecidas, e abrir, assim, novos caminhos para a literatura.

Colagem de Jacques Carelman para a edição de 1963 de “Exercícios de estilo”, de Raymond Queneau.
Colagem de Jacques Carelman para a edição de 1963 de “Exercícios de estilo”, de Raymond Queneau.

Nas conferências sobre poesia que realizou em Harvard em 1967, Jorge Luis Borges confessou ao público: “Comecei, como a maioria dos jovens, acreditando que o verso livre era mais fácil que as formas sujeitas a regras. Hoje tenho quase certeza de que é muito mais difícil que as formas medidas e clássicas.” O OuLiPo se constrói sobre essa mesma convicção. Não vê nenhum encanto na página em branco. Não acredita no gênero romântico nem na liberação do inconsciente buscada pelos surrealistas. Seu campo não é a escritura automática. Para Queneau, a inspiração que consistia em obedecer cegamente ao que ocorria a uma pessoa é, na verdade, “uma escravidão” com relação às regras assimiladas de maneira inconsciente. “Os oulipianos contrapõem o gênio inspirado e o escritor alucinado com o modesto artesão que, em sua obra, manipula a língua como matéria-prima”, escreve o professor de literatura Hermes Salceda no prólogo de Ideias Potentes, primeiro volume do novo Atlas de Literatura Potencial (publicado na Espanha pela editora Pepitas de Calabaza, inédito no Brasil).

Atlas de Literatura Potencial, 1. Ideas Potentes.

Oulipo. Pepitas de calabaza.

Es un oficio de hombres.

Oulipo. La Uña Rota

Ejercicios de Literatura Potencial.

Oulipo. Caja Negra Editora.

Ejercicios de Estilo.

Raymond Queneau. Cátedra.

Cien Mil Millones de Poemas. Homenaje a Raymond Queneau.

Jordi Doce, Rafael Reig, Fernando Aramburu, Francisco J. Irazoki, Santiago Auserón, Pilar Adón, Javier Azpeitia, Marta Agudo, Julieta Valero y V. Molina Foix.

Demipage.

A Vida – Modo de Usar.

Georges Perec. Companhia de Bolso

Especies de Espacios.

Georges Perec. Montesinos.

Uma chuvosa quinta-feira de outubro, na Biblioteca Nacional da França, oeste da capital. Cinco senhores de aspecto bonachão sobem ao palco, como costumam fazer numa quinta de cada mês desde 1996, para propor distintos jogos com a língua a um público de cerca de 300 pessoas. Antes de iniciar a sessão, Marcel Bénamou, secretário “definitivamente provisório” do grupo desde 1971, tenta explicar o que é o OuLiPo aos neófitos. “Uma definição atribuída a Raymond Queneau nos assimilava a ratos que constroem labirintos dos quais se propõem a sair. Comparar-nos com ratos pode parecer injurioso, pois esse roedor não tem boa fama na cultura ocidental: destrói plantações e propaga epidemias. E, convenhamos, nada se parece menos com um oulipiano...”, diz ele, provocando gargalhadas.

Se o OuLiPo é uma vanguarda, então se parece pouco com as demais. O grupo se define por sua modéstia e acessibilidade, nas antípodas da arrogante erudição de André Breton e companhia. “Queneau, que fez parte do grupo surrealista, ficou traumatizado com o autoritarismo de Breton. Nós funcionamos de maneira contrária: ninguém pode ser expulso e ninguém pode ir embora”, diz o atual presidente do OuLiPo, Paul Fournel. A única maneira de sair é “suicidar-se ante um tabelião”. “E uma pessoa pode se negar a entrar no grupo, mas isso aconteceu poucas vezes. O caso mais conhecido é o de Julio Cortázar. Seus amigos lhe disseram que não éramos próximos o suficiente do Partido Comunista”, diz Fournel. Apesar da fama de corrente apolítica, seus 10 membros fundadores se engajaram na Resistência durante a ocupação nazista. Le Lionnais seria deportado ao campo de concentração de Dora. A clandestinidade do grupo em seus primeiros anos e sua afeição por códigos e mensagens cifrados remetem, inevitavelmente, a esse contexto histórico.

Membros atuais da OuLiPo.
Membros atuais da OuLiPo.© Mireille Cardot

Uma segunda-feira cinzenta de novembro, na praça de Clichy, norte de Paris. Anne Garréta prepara-se para a cerimônia de entrega de um prêmio literário numa conhecida brasserie. A romancista é uma das cinco mulheres que se juntaram ao OuLiPo ao longo de sua história. Entrou em 2000, para depois se distanciar do grupo dizendo que se afastaram do projeto original. “Existe uma tendência de repetir fórmulas do passado e utilizá-las como receitas de culinária. O OuLiPo não pode ser só isso: deve encontrar novas formas para desenvolver o potencial da literatura”, afirma. Ela foi embora depois de tentar mudar o grupo de dentro, sem sucesso. “Toda tentativa de reforma fracassa quando uma instituição envelhece e se calcifica. As mulheres me entenderam, mas éramos muito poucas.” Garréta diz que, para sobreviver, o grupo deverá resolver distintos debates que brotaram em seu interior. “Quer favorecer a paridade ou continuar sendo um monocultivo masculino. Prefere ser um grupo de reflexão ou uma empresa dedicada ao espetáculo?”, questiona a escritora.

Apesar da fama de ser apolítica, seus 10 grupos fundadores se engajaram na Resistência durante a ocupação nazista

Este último ponto é o que provoca mais debate nos encontros mensais que o grupo realiza de forma privada, nas casas de “cinco ou seis membros com salas de jantar suficientemente grandes”, diz Fournel. A presença na mídia, as intervenções públicas e a entrada nos currículos educativos popularizaram o OuLiPo até o limite. Talvez até demais. “É um perigo ficarmos associados somente a uma literatura recreativa ou de entretenimento. Também é preciso conservar a parte dedicada à pesquisa”, opina outro integrante, o poeta Frédéric Forte, que entrou em 2005. “O OuLiPo pode ser tão superficial quanto sério: na França, nos tratam como brincalhões, mas nos Estados Unidos nos consideram uma vanguarda experimental. É preciso manter as duas dimensões. Acredito que é positiva a falta de esnobismo e arrogância, mas eu odiaria que as pessoas achassem que meu único objetivo é fazer rir.”

De sua posição de outsider, como ele mesmo se define, Martín Sánchez oferece outro ponto de vista. “Pode ser que tenha havido uma exposição exagerada. Mas uma coisa é se mostrar menos e outra é voltar às origens, quando o OuLiPo foi quase uma sociedade secreta. Sendo um grupo que está a serviço da literatura e dos escritores, não teria sentido esconder-se ou realizar um trabalho oculto”. Aos céticos quanto à pertinência de suas teorias, os integrantes do OuLiPo recomendam observar o arco temporal que abrange das regras aristotélicas no teatro clássico – as famosas unidades de ação, tempo e lugar – até essa rede social que nos obriga a escrever mensagens com menos de 140 caracteres.

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