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Coluna
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Tempos de resistência

A vitória de Trump já afeta o clima das salas de aula nos Estados Unidos

Elvira Lindo
NELLIE DONEVA (AP)
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E, no dia seguinte, os professores tiveram que ir à escola. Em cidades como Nova York, puderam mostrar sua preocupação, seus olhos vermelhados de tanto chorar. Mas, fora da ilha, agora mais isolada do que nunca, os profissionais da educação assumiram uma nova tarefa: a de explicar a seus alunos que, como dizia Orwell, se, por um lado, é preciso considerar o que as leis dizem e o que a ordem determina, por outro, é responsabilidade dos cidadãos ser justos e, se for necessário, desobedientes, para manter, por meio de um trabalho iniludível de resistência, altos níveis de decência e um inegociável sentido da justiça. Alguns professores, um dos grêmios mais voluntariosos dos Estados Unidos (EUA), apesar das condições precárias contra as quais lutam nos bairros pobres, se viram, no dia seguinte à eleição do candidato republicano Donald Trump, diante do desafio de defender as minorias dos valentões. Isso já tinha sido advertido por alguns dos colunistas que previram a vitória de Trump: essas minorias, que em alguns estados são muito pouco representativas, viverão com o medo incorporado a seus seres. Como podem esperar compreensão de um líder que aceitou o apoio da Ku Klux Klan (organização racista)? Como uma criança negra deve se sentir? O que vai acontecer daqui para frente já teve início. Essa cena do aluno que se sente legitimado quando sussurra a um companheiro: “Preto, vai buscar algodão”. Nigger, a palavra que converte uma pessoa em um ser inferior. E os professores publicam suas opiniões na Internet. De estados como Missouri, Michigan, e Pensilvânia. Esses profissionais contam o que escutaram de alguns alunos que viram sua superioridade racial ou religiosa referendada pela vitória de Trump nas urnas. Mandam o negro buscar algodão, os muçulmanos voltarem a seus países. Em uma escola de ensino médio em Detroit se pediu, em coro, a construção de um muro que separa os norte-americanos dos latinos. Depois deste incidente, o diretor do colégio afirmou à imprensa que estão trabalhando com os estudantes para que entendam o impacto dos insultos sobre os agredidos. Todos estes testemunhos e cenas sórdidas estão ao alcance de qualquer um, e deveríamos nos sentir concernidos por eles, mas, na Espanha, às vezes, vemos tudo de um ponto de vista tão furiosamente local que parece que preferimos continuar sendo o país fechado e inacessível que éramos no passado. Temos dificuldades para nos colocarmos no lugar dos outros, como diria Atticus Finch. Tem gente que diz que tanto faz ter um homem negro (Barack Obama) ou laranja (Donald Trump) como presidente. No fim das contas, os norte-americanos são os norte-americanos. Falam como se a população dos EUA fosse extraterrestre, e nós (espanhóis) os modelos de perfeição que habita o planeta Terra. Também vejo que alguns meios reacionários fazem piadinhas com o gesto de estupefação dos progressistas. Eu diria que essa cara de pavor que eles acham tão engraçada é a mesma expressada por todos nós, que tememos esta deriva racista, misógina, xenófoba e destruidora que também se respira na Europa: esse medo é motivo de risada? Eu acredito que o medo é uma amostra de decência, que não deve conduzir à imobilidade.

As minorias devem esperar compreensão de um líder que aceitou o apoio da Ku Klux Klan?

Como diz a filósofa americana Judith Butler, mais do que trabalho partidário, se aproximam tempos de mostrar uma resistência. Todos aqueles que celebram a vitória de Trump devem saber que terão que nos enfrentar. As mulheres primeiro. Faço minhas as palavras de Elisabeth Cady Stanton, uma pioneira do feminismo do século XIX: "O melhor amparo que qualquer mulher pode ter é a coragem". As professoras, agora, deverão explicar às suas alunas como é possível ter à frente de um país um indivíduo que se referiu ao seu gênero de forma tão asquerosa. Mas nós, os espanhóis, que achamos que estamos muito longe da ameaça norte-americana, também devemos educar os jovens com base na resistência e na coragem. Na Espanha, a demonizar o “politicamente correto” já se transformou em um hábito. É comum que quando alguém diz uma grosseria se gabe de não ser politicamente correto, como se isso fosse uma desculpa, um passaporte para justificar qualquer aberração que saia de sua boca. É verdade que o excesso de pudores tomou um rumo que beira o ridículo, e que a ficção precisa recorrer ao amparo da liberdade de expressão, mas, na vida real, há palavras que são como pedras que lapidam a dignidade das pessoas. Não estamos longe demais para entender que o insulto não tem nada a ver com a liberdade. Neste presente, que ninguém pode chamar de engano, chamar alguém de preto, mouro (em referência aos árabes), bicha ou de qualquer um desses maravilhosos termos usados para definir as mulheres, coloca quem os pronuncia no lugar do valentão, desse menino que chamou seu colega de classe de "nigger". Uma piada de judeus na Alemanha dos anos trinta não fazia parte de uma forma de humor inocente, estava carregada de significado ideológico. Hoje, algumas palavras nos EUA voltam a ter o mesmo sentido repugnante que era atribuído a elas nos anos cinquenta. Estar a um oceano de distância não significa que estamos isentos de responsabilidade, porque os professores, na Espanha, também têm que ir à escola todos os dias. E que São Leonard Cohen nos proteja.

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