_
_
_
_
_

Estados Unidos mais rico apoia Hillary Clinton

Áreas urbanas mais ricas dos EUA se mostram impermeáveis à retórica apocalíptica de Trump

M. B.

No país dos mais ricos, o desemprego e o fechamento de fábricas são uma preocupação de poucos. A imigração é vista mais como uma ajuda do que como ameaça. Os discursos aterrorizantes sobre os Estados Unidos como sendo um país cuja economia está em queda livre, com massas imensas de desesperados prestes a se rebelar contra as elites opressoras, soam a filme de ficção científica.

A candidata democrata, Hillary Clinton, na Carolina do Norte.
A candidata democrata, Hillary Clinton, na Carolina do Norte.WIN MCNAMEE (AFP)
Mais informações
As vidas partidas pela fronteira com os Estados Unidos
“Não voto com minha vagina”, diz Susan Sarandon sobre não votar em Hillary Clinton

No condado de Loudoun, a cerca de 65 quilômetros de Washington, o que tira o sono das pessoas são outras coisas mais prosaicas. O tráfego, que as obriga a passar horas e horas nas avenidas e estradas que levam ao trabalho. Ou os impostos.

Loudoun é o território do 1%: os mais ricos, os que sobreviveram à última crise com pouquíssimos arranhões. E é um território democrata, um território de Hillary Clinton. A candidata democrata às eleições presidenciais da próxima terça-feira conta, em lugares como este, com um dos setores que poderia lhe garantir a vitória diante do republicano Donald Trump: os brancos com diploma universitário e alta renda.

Nesses vilarejos, a Main Street (rua principal) não oferece um cenário de vitrines arruinadas ou prédios abandonados, como em tantas regiões rurais do país. Nestas main streets se veem antiquários, restaurantes sofisticados e agências imobiliárias que oferecem mansões por três milhões de dólares.

“As autoridades dizem que um homem agiu em defesa própria em Sterling ao atirar em um cachorro.” “Finalmente o dia das eleições chegou: na terça-feira se espera uma participação recorde.” “Novas normas para os aluguéis.” As manchetes de três jornais diferentes de um dos condados mais ricos dos Estados Unidos são o termômetro de uma vida cotidiana sem grandes sobressaltos. Nem sinal de notícias sobre overdose de heroína ou de novas saídas de indústrias da região, como na imprensa local das cidades do Meio-Oeste e dos Apalaches, onde Trump vence.

Em Loudoun a frustração que deu impulso ao magnata nova-iorquino é algo exótico. O condado faz parte do anel de cidades e bairros residenciais próximos de Washington que se desenvolveram a partir de meados do século ao abrigo do complexo militar-industrial. Ficam no norte da Virgínia, sede do Pentágono e da CIA. Formam uma megalópole sem nome. O historiador Andrew Friedman chamou a área de A Capital Encoberta, e esse foi o título de seu livro sobre a retaguarda da Guerra Fria. É a paisagem anônima na qual habitam os espiões de séries como Homeland. E é o mundo do establishment da segurança e da defesa, que teme a chegada de Trump à Casa Branca. As empresas tecnológicas e as empreiteiras da defesa — nos últimos anos, no setor de cibersegurança — contribuíram para uma prosperidade à prova de recessões.

Quando no início de agosto Trump visitou o condado, retomou seu discurso catastrofista e disse a uma audiência de seguidores: “As coisas vão muito mal aqui, certamente. Lamento dizer isso”. Ninguém aplaudiu porque aqui quase ninguém pensa que as coisas estejam indo muito mal. Nem todos são ricos em Loudoun County, nem todos se sentem ricos, mas o país de Trump fica longe.

Tampouco ganharia aplausos no almoço de oito mulheres que a candidata à Câmara de Representantes, LuAnnBennett, organizou no restaurante Tuscarora Mill, de Leesburg, a capital de Loudoun. As oito ostentam cargos eletivos, são candidatas nas eleições de terça-feira ou trabalham para as campanhas. As oito são democratas, como a maioria aqui: partidárias de políticas sociais mais igualitárias e redistributivas e da proteção dos direitos civis das minorias. E quando veem um estrangeiro, a primeira coisa que fazem é perguntar como esta campanha está sendo vista no exterior. E quando o estrangeiro lhes diz uma obviedade — que está consciente de que nem todos os EUA são como Donald Trump —, Phyllis Randall, que é a presidenta do condado, é precisa: “Parte da América é Donald Trump”.

A comida chega e começam a trocar histórias sobre episódios de discriminação e desigualdade salarial, ou reflexões sobre a luta das mulheres nas últimas décadas. Randall, a única afro-americana na mesa, explica que, quando leu seu discurso anual como chefa do condado, seis homens brancos lhe perguntaram: “Quem o escreveu para você?”. Aparentemente, não acreditavam que uma mulher negra pudesse tê-lo escrito sozinha.

“Meu Deus”, exclamam as demais. Karen Jimmerson, vice-prefeita de Purcellville, outra cidade do condado, conta que, quando entrou na política há dois anos e meio, um homem progressista disse a seu marido: “Quero te agradecer por permitir que sua mulher se apresente nestas eleições”.

Embora a política local seja o tema do almoço, a conversa se volta para Trump. Inevitavelmente é mencionada a gravação de 11 anos atrás na qual ele alardeava poder abusar sexualmente das mulheres graças à sua fama. Trump estava com vários homens quando disse aquilo. “Nenhuma das pessoas teve culhões”, diz Jimmerson, usando a palavra espanhola, “para dizer-lhe: ‘Isto não está bem’.”

Loudoun é um exúrbio, o neologismo que denomina as regiões urbanas que ficam além dos subúrbios. Em inglês, o subúrbio designa os bairros residenciais na periferia das cidades. E suburbia é a imaginária cidade de bairros de casas com jardim, shopping centers e pistas expressas que se estende por todo o país. Os exúrbios — subúrbios, mas ainda mais longe do centro urbano, que neste caso seria Washington — são o cenário do que o colunista David Brooks chamou de “a era da grande dispersão”.

“Em 1950 somente 23% dos americanos viviam em suburbia”, escreveu Brooks em seu ensaio On Paradise Drive (No Caminho do Paraíso). “Mas agora a maioria vive ali, e os subúrbios atuais se alongam cada vez mais rápido e para mais longe. Assim, nos últimos anos muitos lugares fora dos centros urbanos se liberaram da força gravitacional das cidades e agora flutuam em um novo espaço muito longe delas.”

O livro de Brooks é de 2004, antes da Grande Recessão, que se originou em uma bolha imobiliária nos subúrbios e exúrbios. Desde então tem ocorrido nos EUA um regresso aos centros urbanos, mas também o surgimento nos próprios subúrbios de imitações de centros urbanos, com suas lojas de luxo, supermercados orgânicos e restaurantes étnicos.

À medida que Leesburg vai ficando para trás, os bairros residenciais se transformam em vinhedos e bosques. Os anúncios eleitorais democratas dão lugar aos de Trump: a campanha chega à periferia da periferia. Em Middleburg, uma cidadezinha entre bucólica e aristocrática onde os Kennedys tiveram uma casa, há uma feira natalina e, ao lado, uma igreja episcopal. “Oração de vigília eleitoral”, diz um cartaz. “Todos estão convidados a entrar e rezar.”

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_